São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 1995 |
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Matutos: os novos, os antigos
MOACYR SCLIAR -Teve uma época -disse ele- que eu me ofendia quando me chamavam de matuto. Porque sou meio do interior, sabe? E o pessoal do interior não gosta muito dessa coisa de caipira, roceiro, matuto. Nós temos o nosso orgulho. Você não acha justo a gente ter orgulho?Eu disse que sim, que achava justo. -Mas a verdade -continuou ele- é que lá no interior eu não tinha futuro. Nenhum futuro. O interior não valoriza o progresso, você compreende? O interior nunca ouviu falar de modernidade. Computador, telefone celular, essas coisas os caras lá nem sabem o que é. Eu vi que lá ia marcar passo toda a vida. E aí vim para a cidade. Vim para vencer. -E venceu? Sorriu: -Não. No começo, não. Você acha que é fácil para um cara do interior, um matuto como dizem aqui, vencer na cidade? Que nada. Eu comi o pão que o diabo amassou. O pão que o diabo amassou? Nem isso, cara. Nem isso. Tinha dias que eu não comia pão algum. Eu morava na favela, cara. E a vida lá é dura, você sabe. -E você não trabalhava? -Trabalhar em quê? Na construção civil? Eu? Eu não estou aí para cair de um andaime e me quebrar todo. Não, eu tinha outros planos. Eu queria vender; sempre tive vocação para o marketing. Só que eu não queria vender para pobre. Pobre não faz parte do mercado, você sabe. Pobre não paga, é um horror. Eu queria vender para rico. Riu: -E a mercadoria mais fácil de vender você sabe qual é. Fiquei rico, cara. Muito rico. Os antigos matutos eram pobres. Os novos matutos ficaram milionários com o pó. Fez uma pausa. -Mas -continuou, com uma careta de desgosto- não posso dizer que estou inteiramente feliz. Esse negócio de ganhar dinheiro é bom até certo ponto. A gente começa a ficar com medo. Medo do Imposto de Renda, medo de assalto, medo de sequestro. As cidades brasileiras são muito violentas, sabe? E o pior é que os bandidos agora usam técnicas modernas. Você já viu o armamento deles? Pois é. E é por isso que eu estou pensando em mudar de vida. Olhou-me, e era indisfarçável a melancolia em seu olhar: -Eu quero voltar a ser matuto, cara. Não matuto de pó; matuto de antigamente. Eu quero ter um rancho lá no fim do mundo, quero ficar acocorado na frente da porteira, pitando fumo e cuspindo de vez em quando. É isso que eu quero. E vou conseguir. Nem que me custe muito dinheiro, eu ainda volto a ser matuto. Texto Anterior: Ceará; Rio Grande do Norte Próximo Texto: Pagar "por fora" dentro do SUS é um direito da população Índice |
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