São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Romper o círculo vicioso

MAURÍCIO SCHULMAN

Na tentativa de ter sob constante mira seu objetivo básico, manter a taxa inflacionária sob rígido controle, a equipe econômica parece ter caído numa armadilha. Reconhece-se que a oferta é insuficiente e que o consumo contido, obviamente, tende a expandir-se tão logo algumas facilidades se apresentem ao consumidor. Assim, o governo apressa-se em represar o consumo.
Ciclotimicamente esta situação tende a repetir-se e a providência é sempre a mesma: acionam-se mecanismos para a contenção do consumo, num círculo vicioso que, parece, tão cedo as autoridades econômicas não se mostram dispostas a romper.
Não se trata, aqui, de qualquer crítica ao Plano Real. O setor financeiro alinhou-se aos objetivos de controle inflacionário propostos pelas autoridades econômicas, mesmo antes da implantação do Real e persevera nessa postura. Nossas manifestações de apoio têm sido públicas e claras.
Porém, neste momento delicado que atravessa o programa governamental de estabilização, vêmo-nos no dever de manifestar nossa apreensão e alertar quanto aos efeitos danosos que estão sendo causados pelas medidas que vêm sendo tomadas para tolher as atividades do setor financeiro.
Sob a alegação da necessidade de inibir o consumo, várias providências, centradas principalmente sobre o setor financeiro, vêm sendo adotadas no sentido de enxugar a liquidez do mercado e bloquear o acesso ao crédito.
O setor financeiro, talvez o mais controlado de toda a economia, vem entregando parcelas crescentes dos depósitos que recebe e dos empréstimos que concede à guarda do Banco Central e tem suas operações acrescidas de uma brutal tributação. Podemos dizer que o Brasil está em vias de criar um setor financeiro que deve funcionar sem sua principal matéria-prima: o dinheiro.
Recentemente, foi determinado o aumento em operações com pessoas físicas do IOF (Imposto Sobre Operações Financeiras) de 6% para 18% ao ano, o que provocou a subida do juro do cheque especial de 12% para 13% ao mês.
Mesmo sendo uma taxa elevada, a medida é inócua. O usuário que está rolando sua dívida mês a mês, não deixará de fazê-lo por uma diferença de 1% ao mês, pois já está exaurido em sua capacidade financeira. Essa diferença só agrava a situação de pessoas físicas e também de pessoas jurídicas atualmente devedoras. O perverso da medida é que a limitação de aplicação de alguns bancos que já estavam excedidos no conceito também recente do Banco Central -um limite para o fim de maio sobre os valores aplicados na semana que antecedeu o Carnaval, elevado em 11%, que é muito menos que o juro capitalizado de fevereiro até o fim de maio- impõe uma penalidade à instituição financeira, que torna a operação inviável se tiver de repassá-la a seus clientes.
Enquanto isso, a informalidade está à solta. Proliferam nos jornais os anúncios de ``empresas" dispostas a realizar operações financeiras informais. Noticia-se que nos últimos 30 dias, 400 ``novas factorings" passaram a atuar, operando com imposto zero e sem compulsório.
São empresas que vivem de comprar cheques e de operações contabilmente duvidosas, criando uma competição desleal e intolerável para os bancos.
O sistema financeiro formal, ao captar dinheiro de um aplicador de CDB, por exemplo, oferece-lhe algo em torno de 4% ou 4,5% ao mês, para que após descontados os impostos, ele receba líquidos 3% ou 3,5%.
Se formos aplicar esse dinheiro, após recolher os 30% de compulsório sobre a captação e mais 15% sobre o empréstimo, além dos impostos (IR, PIS, Finsocial, IOF) e das despesas administrativas sobre a operação, teremos que emprestar o mesmo dinheiro entre 7% ou 8%, para ficar com uma margem de ``spread" de 1%.
Ora, hoje as partes se encontram, alijam o banco de sua transação, combinam que o aplicador pode receber líquidos 5,5%, por exemplo, e o governo não vê um tostão de impostos ou de compulsórios sobre essa transação.
O crescimento dos depósitos e dos empréstimos bancários não justifica, para os analistas, o extraordinário aumento do movimento econômico no país ou o crescimento real da demanda ocorrida de dezembro a março.
O governo elegeu o cheque pré-datado como o grande vilão dessa história e proibiu os bancos de custodiarem esses documentos. Esse era um serviço que os bancos prestavam a seus clientes e, com base em seu fluxo, operavam no desconto de promissórias, duplicatas e até empréstimos à pessoa física do dono da empresa, já que o volume de entrada de receita dessas empresas justificava a operação.
Perdeu-se o controle sobre o fluxo destes cheques, mas os ``pré" continuam existindo em algum lugar: no cofre do comerciante, descontados nas empresas de ``factoring", ou vendidos na agiotagem tradicional que floresce viçosa à sombra das medidas que o governo vem tomando. Sem contar que depois que o consumidor percebe as ``vantagens" do sistema informal, dificilmente será convencido a retornar ao mercado formal.
E a inibição ao consumo? Pelo arrocho ao crédito, os bancos, atualmente ficaram com uma carteira menos seletiva. Só os clientes de maior risco, sem alternativas, continuam assumindo pagar os altos juros que os bancos são obrigados a cobrar. No repasse de um empréstimo, é lógico que os bancos são obrigados a aumentar sua taxa de risco.
Há informações de que, nos últimos doze meses, a carteira de atrasos dobrou.
Dentro desse cenário, o banco vê-se obrigado a distribuir o crédito, e, portanto, o risco, de uma forma mais ampla. Isso quer dizer, redirecionam empréstimos de empresas às pessoas físicas, que levam esse dinheiro, quase sempre ao consumo.
Esse procedimento contraria tudo o que o governo prega, pois o juro alto, na verdade, está fomentando o consumo, com um efeito absolutamente inverso ao que pretende alcançar para manter a economia estabilizada.
A política de aumento generalizado de compulsórios e tributação está elevando o nível de inadimplência, não barra o consumo, empurra o País para a informalidade, não arrecada impostos e compromete o desempenho do setor financeiro.
Num momento em que o governo toma medidas delicadas para preservar o equilíbrio das contas externas, também é preciso lembrar que a saúde do sistema financeiro brasileiro é fundamental para preservar a capacidade dos bancos de captarem recursos no exterior.
Num momento de transição para a estabilidade, compreende-se perfeitamente a preocupação do governo em evitar que o excesso de consumo em relação `a capacidade de oferta dos agentes produtivos internos provoque aumentos de preços.
Contudo, não basta tentar segurar o desejo reprimido de consumo que atinge a maior parte da sociedade por mais de uma década.
É preciso redirecionar parte dos recursos retirados da economia pelo governo -via compulsórios e tributos- para que as empresas obtenham empréstimos a taxas e prazos adequados à realização de investimentos que permitam ampliar sua capacidade produtiva. Caso contrário, jamais romperemos esse círculo vicioso.

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