São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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A nebulosa fascista

UMBERTO ECO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1942, quando tinha dez anos, recebi o Primeiro Prêmio Provincial do Ludi Juveniles (uma competição voluntário-compulsória para jovens fascistas italianos, isto é, para todos os jovens italianos). Eu discorrera com destreza retórica sobre o tema: "Deveríamos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália? Minha resposta foi afirmativa. Eu era uma criança esperta.
Até que, em 1943, descobri o sentido da palavra Liberdade. Permitam-me contar essa história no final da minha fala. Naquele momento, Liberdade não significava Liberação.
Passei dois anos da minha infância entre soldados da SS, fascistas e comunistas atirando uns nos outros, e aprendi como me esquivar das balas (...).
Em abril de 1945, a Resistência ocupou Milão. Dois dias mais tarde, chegaram ao vilarejo onde eu vivia por então. Foi um momento de alegria. A praça central estava tomada de gente cantando e agitando bandeiras, clamando por Mimo, o líder guerrilheiro da região. Mimo apareceu no balcão da prefeitura, apoiado em sua bengala, pálido, e com uma das mãos tentava acalmar a multidão.
Eu estava ansioso por ouvir seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos discursos históricos de Mussolini -cujas passagens mais memoráveis tínhamos que decorar na escola. Silêncio. Mimo falava numa voz rouca, quase inaudível. Ele disse: "Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos... aqui estamos. Glória aos que tombaram pela liberdade.
E foi só. Ele entrou no edifício. A multidão gritava, os guerrilheiros levantavam suas armas e disparavam rajadas festivas. Nós garotos corríamos para juntar as cápsulas, itens preciosos numa coleção, mas eu também havia aprendido que liberdade de palavra significa libertação da retórica. (...)
Hoje em dia, em meu país, há quem diga que o mito da Resistência foi uma mentira comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como propriedade pessoal por haverem desempenhado papel de destaque nela; mas me lembro de guerrilheiros com lenços de cores diferentes. (...)
Hoje em dia, em meu país, há quem diga que a guerra de libertação foi um período trágico de cisão, e que tudo de que necessitamos é uma reconciliação nacional.(...) Posso mesmo admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer "Ok, pode voltar e começar tudo de novo. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e declarar solenemente que Eles não poderão repetir o que fizeram.
Mas quem são Eles?
Se temos em mente os governos totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, parece fácil dizer que seria difícil que eles ressurgissem sob a mesma forma em circunstâncias históricas diferentes.
Uma vez que o fascismo de Mussolini baseava-se na idéia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do Destino Imperial de Roma, no desejo imperialista de conquistar novos territórios, na idéia de uma nação inteira em camisas negras, na rejeição da democracia parlamentar e no anti-semitismo, não há dificuldade alguma em admitir que a Allianza Nazionale, nascida do antigo MSI, é decerto um partido de direita, mas com muito pouco em comum com o antigo fascismo.
Nesse mesmo espírito, apesar de me preocupar com os vários movimentos paranazistas atuando aqui e ali na Europa (incluindo a Rússia), não acredito que o nazismo, em sua forma original, esteja a ponto de reaparecer como movimento de escala nacional.
Mesmo assim, muito embora regimes políticos possam ser derrubados e ideologias possam ser criticadas e desautorizadas, sempre existe por trás de um regime e de sua ideologia um modo de pensar, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e impulsos insondáveis. Ainda existiria um fantasma rondando a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que "só interessam as palavras e o resto é conversa fiada. Hábitos linguísticos frequentemente são sintomas importantes de sentimentos subjacentes.
Permitam-me então perguntar por que não somente a luta da Resistência, mas também toda a Segunda Guerra Mundial foi definida no mundo inteiro como uma luta contra o fascismo.
Se relerem "Por Quem os Sinos Dobram, os senhores descobrirão que Robert Jordan identifica seus inimigos como fascistas, mesmo quando tem em mente os falangistas espanhóis.(...)
Durante a era McCarthy, os americanos que tomaram parte na Guerra Civil Espanhola eram chamados de antifascistas prematuros -o que significa que lutar contra Hitler nos anos 40 era dever moral de cada bom americano, mas que lutar contra Franco cedo demais, nos anos 30, cheirava mal... (...)
"Mein Kampf é o manifesto sistemático de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do povo escolhido ariano, uma noção precisa da entartete Kunst, arte degenerada, uma filosofia da vontade de poder e do šbermensch (super-homem). O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, do mesmo modo como o Diamat de Stálin (versão oficial do marxismo soviético) era ruidosamente materialista e ateu. Se por totalitarismo se entende um regime que subordina todos os atos dos indivíduos ao Estado e à sua ideologia, então tanto o nazismo quanto o stalinismo eram autênticos regimes totalitários.
O fascismo certamente era uma ditadura, mas não inteiramente totalitária -e isso não por brandura, mas pela fraqueza filosófica de sua ideologia. (...) Mussolini não tinha qualquer filosofia: só tinha retórica. (...)
Pode-se afirmar que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita a controlar um país europeu, e que todos os movimentos semelhantes que estavam por vir encontraram um arquétipo comum no regime de Mussolini. O fascismo italiano foi o primeiro a estabelecer uma liturgia militar, um folclore e mesmo um modo de vestir -que chegou a ser mais influente no exterior que Armani, Benetton ou Versace.
Foi só nos anos 30 que movimentos fascistas surgiram no Reino Unido (com Mosley), na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu vários líderes liberais europeus de que o novo regime estava implementando reformas sociais interessantes, proporcionando uma alternativa brandamente revolucionária à ameaça comunista.
Não obstante isso, a precedência histórica não me parece razão suficiente para explicar porque o termo fascismo se tornou uma espécie de sinédoque, uma denominação pars pro toto de regimes totalitários distintos. Pouco adianta dizer que o fascismo continha em si, como que em estado quintessencial, todos os elementos das formas posteriores de totalitarismo. Ao contrário: o fascismo não tem quintessência alguma, ele sequer tem uma essência. O fascismo era um totalitarismo difuso.
O fascismo não era uma ideologia monolítica, e sim uma colagem de diferentes idéias políticas e filosóficas, um vespeiro de contradições. (...)
O Partido Fascista nasceu alardeando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que dele esperavam uma contra-revolução (...).
Só existiu um nazismo, e não se pode rotular de nazista o falangismo hipercatólico de Franco, uma vez que o nazismo ou é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão ou não é nazismo. Em contraste, há várias maneiras de ser fascista sem que mude o nome do jogo. Acontece com a noção de fascismo o que, segundo Wittgenstein, ocorre com a noção de jogo. Um jogo pode ser competitivo ou não, pode interessar a uma ou mais pessoas, pode exigir ou não alguma habilidade especial, pode envolver dinheiro ou não. Jogos são séries de atividades diferentes que exibem certo ar de família.

1 2 3 4
abc bcd cde def

Suponhamos uma série de grupos políticos. O grupo um é caracterizado pelos traços abc, o grupo dois pelos traços bcd e assim por diante. Um é semelhante a dois por que ambos têm dois traços em comum; três é semelhante a dois, e quatro é semelhante a três pelas mesmas razões. Note-se que três também é semelhante a um (ambos têm em comum o traço c).
O caso mais curioso é o de quatro, obviamente semelhante a três e dois, mas sem qualquer traço em comum com um. Mesmo assim, devido à série ininterrupta de semelhanças decrescentes entre um e quatro, persiste, por uma espécie de transitividade ilusória, um ar de família entre quatro e um.
Assim, o termo "fascismo tornou-se universalmente aplicável por que é possível eliminar de um regime fascista um ou dois traços sem que ele deixe de ser fascista. (...) Apesar de sua natureza difusa, creio ser possível esboçar uma lista de traços típicos daquilo que gostaria de chamar protofascismo ou Fascismo Eterno.
Esses traços não podem ser acomodados dentro de um sistema; muitos deles são contraditórios entre si, além de ocorrerem em outros tipos de despotismo ou fanatismo. Mas basta que um deles ocorra para que se coagule a nebulosa fascista.
1. O primeiro traço de protofascismo é o culto à tradição. O tradicionalismo é mais antigo que o fascismo, e era típico do pensamento católico contra-revolucionário após a Revolução Francesa; mas nascera ainda antes, no final da era helenística, como reação ao racionalismo grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diferentes (todas admitidas indulgentemente no Panteão romano) começaram a sonhar com uma revelação feita na aurora da história humana. Essa revelação permanecera por muito tempo oculta sob o véu de línguas esquecidas; estava contida nos hieróglifos egípcios, nas runas celtas, nos pergaminhos de religiões asiáticas ainda desconhecidas.
Essa nova cultura tinha que ser sincrética. Sincretismo não é apenas, como diz o dicionário, "a combinação de diferentes formas de crença ou prática; uma tal combinação tem que tolerar contradições. Cada uma das mensagens originais contém uma centelha de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, de fato estarão apenas aludindo, alegoricamente, à mesma verdade primeva. Em consequência, não pode haver progresso do saber. A verdade já foi pronunciada de uma vez por todas, e só podemos seguir interpretando sua mensagem obscura.

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