São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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A nebulosa fascista

UMBERTO ECO

Basta dar uma olhada aos patronos de qualquer movimento fascista para encontrar os grandes pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincréticos e ocultos.
A fonte teórica mais importante da nova direita italiana, Julius Evola, fundiu o Santo Graal e os Protocolos dos Sábios de Sião, alquimia e Sacro Império Romano-Germânico. O próprio fato de a mesma direita italiana, para mostrar largueza de vistas, ter recentemente ampliado seu rol de autores de modo a incluir De MaŒstre, Guenon e Gramsci é prova gritante de sincretismo.
Basta checar as estantes que as livrarias americanas reservam para a "new age para encontrar até mesmo Santo Agostinho, que, pelo que sei, não era fascista. Mas o próprio fato de pôr no mesmo saco Santo Agostinho e Stonehenge já é sintoma de protofascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto fascistas quanto nazistas cultuavam a tecnologia, ao passo que pensadores tradicionalistas normalmente a rejeitam enquanto negação de valores espirituais tradicionais.
Entretanto, apesar de orgulhoso de suas conquistas industriais, o elogio nazista à modernidade era apenas a superfície de uma ideologia baseada em Sangue e Solo (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era disfarçada de refutação do modo de vida capitalista, mas se destinava principalmente à rejeição do Espírito de 1789 (e de 1776, é claro). O Iluminismo, a Era da Razão, é visto como o começo da depravação moderna. Nesse sentido, o protofascismo pode ser definido como irracionalismo.
3. O irracionalismo também depende do culto à ação pela ação. Sendo a ação bela em si mesma, ela deve ser implementada antes de ou sem qualquer reflexão prévia. Assim sendo, a cultura é suspeita à medida que é identificada com atitudes críticas.
Os intelectuais fascistas oficiais estão ocupados sobretudo em acusar a cultura moderna e a "intelligentsia liberal pela perda dos valores tradicionais.
4. Nenhum sincretista é capaz de suportar a crítica. O espírito crítico faz distinções, e ser capaz de fazê-lo é signo de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica elogia o desacordo como maneira de aprimorar o conhecimento. Para o protofascismo, desacordo é traição.
5. Além disso, desacordo é sinal de diversidade. O protofascismo desenvolve-se e alcança o consenso explorando o medo natural da diferença. O primeiro apelo de qualquer movimento fascista é contra os intrusos. Por isso o protofascismo é racista.
6. O protofascismo germina a partir da frustração social ou individual. É por isso que um dos traços mais típicos dos fascismos históricos foi o apelo a uma classe média frustrada, sofrendo sob alguma crise econômica ou humilhação política, assustada com a pressão dos grupos sociais inferiores.
Em nossos tempos, quando os velhos "proletários estão se tornando pequenos burgueses (e os lumpen excluem a si mesmos da cena política), o fascismo de amanhã encontrará aí um público adequado.
7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o protofascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos, o de terem nascido no mesmo país. É essa a origem do nacionalismo. Ademais, os únicos que podem dar identidade a uma nação são seus inimigos. Daí que na raiz da psicologia protofascista esteja a obsessão da conspiração (possivelmente internacional); os seguidores devem se sentir sitiados.
A maneira mais fácil de evocar a imagem de uma conspiração é o apelo à xenofobia. Mas a conspiração deve partir de dentro também: os judeus costumam ser o melhor alvo, já que têm a vantagem de estar dentro e fora. O exemplo mais recente dessa obsessão, aqui nos EUA, é o livro de Pat Robertson, "The New World Order.
8. Os seguidores do movimento devem se sentir humilhados com a riqueza e a força ostentatórias de seus inimigos. Quando era garoto, fizeram-me crer que os ingleses eram um povo-de-cinco-refeições; comiam com mais frequência que nós, pobre mas sóbrios italianos. Os judeus são ricos e ajudam uns aos outros por meio de uma rede secreta de assistência mútua.
Mas é importante que os seguidores estejam convencidos de que podem superar seus inimigos. Desse modo, através de uma contínua mudança de registro retórico, os inimigos são ao mesmo tempo fortes e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras porque são visceralmente incapazes de avaliar objetivamente a força do inimigo.
9. Para o protofascismo não há luta pela vida mas vida pela luta. Por isso, o pacifismo é uma transigência com o inimigo. O pacifismo é um mal porque a vida é uma guerra permanente. Isso ocasiona um complexo de Armagedon. Uma vez que os inimigos devem e podem ser derrotados, deve haver uma batalha final, após a qual o movimento controlará o mundo. Mas uma tal solução final implica uma era subsequente de paz, uma Idade de Ouro, o que contradiz o princípio da guerra permanente. Nenhum movimento fascista foi capaz de resolver este dilema.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, à medida que estas são fundamentalmente aristocráticas. Ao longo da história, todo elitismo aristocrático ou militarista implicou desprezo pelos mais fracos.
O protofascismo não poderia deixar de advogar um elitismo popular. Todo cidadão está entre as melhores pessoas do mundo os membros do partido são os melhores entre os cidadãos, todo cidadão pode (ou deveria) tornar-se membro do partido. Mas não podem haver patrícios sem plebeus. De fato, o Líder sabe que sua força baseia-se na fraqueza das massas, tão fracas a ponto de precisar de um Líder. Como o grupo é organizado hierarquicamente (de acordo com o modelo militar), cada líder subordinado despreza seus subalternos, e cada um destes despreza seus inferiores. Isso reforça o sentido de elitismo de massa.
11. Nessa perspectiva, todos são educados para se tornarem Heróis. Em todas as mitologias, Herói é um ser excepcional, mas na ideologia protofascista o heroísmo é a norma. Esse culto ao heroísmo está estreitamente ligado a um culto da morte. Não é por acaso que uma das palavras de ordem dos falangistas era viva la muerte.
Diz-se aos leigos que a morte é desagradável mas que deve ser encarada com dignidade; aos fiéis, diz-se que a morte é um meio doloroso de atingir uma alegria sobrenatural. Em contraste, o herói protofascista deseja a morte anunciada como a melhor recompensa para uma vida heróica. O herói protofascista está ansioso por morrer. É mais frequente, diga-se de passagem, que em sua impaciência ele acabe mandando outros na frente.
12. Como a guerra permanente e o heroísmo são jogos difíceis, o protofascista transfere sua vontade de potência para assuntos sexuais. É esta a origem do machismo (que implica desprezo pelas mulheres e condenação intolerante a hábitos sexuais não convencionais -da castidade ao homossexualismo). (...)
13. O protofascismo baseia-se num populismo qualitativo. Numa democracia, os cidadãos têm direitos individuais, mas o conjunto dos cidadãos só tem impacto político de um ponto de vista quantitativo (aceitam-se as decisões da maioria).
Para o protofascismo, os indivíduos enquanto tais não têm direitos, e O Povo é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica expressando a Vontade Comum. Como nenhum grupo de seres humamos algum dia seria capaz de ter uma vontade comum, o Líder finge ser seu intérprete.
Tendo perdido seu poder de delegação, os cidadãos não agem, são apenas convocados, pars pro toto, a interpretar o papel de O Povo -que é portanto uma mera ficção teatral. Para termos um bom exemplo, não precisamos mais recorrer à Piazza Venezia em Roma ou ao Estádio de Nurembergue. O futuro nos reserva um populismo qualitativo via TV ou Internet, no qual a reação emocional de um grupo seleto de cidadãos pode ser apresentado e aceito como a Voz do Povo.
Por causa de seu populismo qualitativo, o protofascismo tem que estar contra governos parlamentares "podres. (...) Cada vez que um político põe em questão a legitimidade de um parlamento por não mais representar a Voz do Povo, pode-se sentir o cheiro de protofascismo.
14. O protofascismo fala Novilíngua. "Novilíngua foi inventada por Orwell, em "1984, como a linguagem oficial do Ingsoc, ou "Socialismo Inglês. Mas elementos de protofascismo são comuns a formas diferentes de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas tinham base num léxico empobrecido e numa sintaxe elementar, de modo a limitar o desenvolvimento dos instrumento do raciocínio complexo e crítico. Mas devemos estar prontos a identificar novas espécies de "Novilíngua, ainda que na forma inocente de um programa popular de auditório.
Tendo esboçado os possíveis avatares do protofascismo, deixem-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943, disseram-me que, segundo as informações do rádio, o fascismo desmoronara e Mussolini estava preso. Minha mãe mandou-me comprar um jornal. Fui à banca mais próxima e vi que os jornais estavam lá, mas que os títulos eram diferentes. Além disso, depois de um rápido exame das manchetes, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um deles às cegas e li uma mensagem na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos (...).
Até então eu pensava que só havia um partido por país -na Itália, o Partito Nazionale Fascista. Eu estava descobrindo que em meu próprio país partidos diferentes podiam existir ao mesmo tempo. E mais: como eu era um garoto brilhante, percebi imediatamente que eles já existiam antes, como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno da liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, de associação política. Essas palavras -liberdade, ditadura-, eu as lia pela primeira vez em minha vida. Renasci como homem livre ocidental por força dessas palavras novas.
Temos que nos manter alertas para que o sentido dessas palavras não seja esquecido outra vez. O protofascismo ainda está à nossa volta, às vezes à paisana. Seria mais fácil para nós se aparecesse alguém no cenário mundial dizendo "quero abrir Auschwitz de novo, quero que os camisas-negras desfilem outra vez nas praças italianas. É pena!
A vida não é tão simples. O protofascismo pode voltar sob o mais inocente dos disfarces. Nosso dever é pô-lo a nu e apontar quaisquer novas ocorrências -todos os dias, em todas as partes do mundo. Mais uma vez dou a palavra a Roosevelt: "Arrisco-me a afirmar que, se a democracia americana deixar de existir como uma força viva, procurando dia e noite melhorar a sorte de seus cidadãos por meios pacíficos, o fascismo ganhará força em nosso país (4 de novembro de 1938). Liberdade e liberação são uma tarefa infinita.
Que seja esta nossa senha: não esquecer.

Tradução de SAMUEL TITAN JR

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