São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Diversão e subversão

Antonio Nóbrega traz magia aos palcos de São Paulo

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

Magnetismo absoluto, do início ao fim. Esta é uma das qualificações mais modestas que se pode atribuir ao ambiente de deslumbramento em que transcorre o espetáculo "Segundas Histórias, criado pelo coreógrafo, músico, dançarino e ator Antonio Nóbrega.
A peça é uma comédia lírica, a continuação da epopéia iniciada em "Brincante, em que o personagem central é Tonheta, um nordestino quixotesco-chapliniano que para superar o infortúnio empreende uma heróica busca, cheia de episódios hilariantes, do amor.
A peça é pura magia. Talvez a chave para esse encantamento esteja no fenomenal rigor empenhado em todos os detalhes, seja no canto, seja na dança, seja na iluminação e nos figurinos.
Tanto apuro parece não combinar com o aspecto do teatro-escola Brincante, com sua arquibancada feita sobre chão de vermelhão num galpão em fundo do quintal.
O cenário, delimitado por peças de pano velho, é o de um circo mambembe do interior, montado sob um telheiro em que sobressaem lâmpadas pintadas de azul e vermelho penduradas em fios ou atarrachadas dentro de baldes de plástico. Nada supõe o banquete dramático que essa precariedade acabará proporcionando.
No início da peça, por exemplo, chama a atenção o rigor com que a música é tocada por um personagem com roupas de corte fino feitas de tecido sujo e gasto.
Um detalhe: os dedos magros e compridos dos pés de Nóbrega acompanham a música em ritmo próprio e descompassado, como se tivessem vida autônoma e ameaçassem se desprender do corpo. Um lirismo bem feito dá o tom.
A começar pelo detalhe de que "Segundas Histórias é diversão. Revela um raro respeito pelo público, uma generosidade totalmente inusitada para os padrões.
Brasileiro, nordestino, bufão e chapliniano, a marca mais evidente do herói Tonheta é a dualidade -uma aparente contradição entre sua figura precária, marca de uma suposta estreiteza de horizontes, e a humanidade inesgotável que consegue transmitir. O público não consegue evitar os aplausos nos momentos de maior virtuosismo.
Vale notar com que habilidade os criadores conseguem, também através da empatia, romper o distanciamento entre palco e platéia. Eles conversam, contam casos, até "catam pulgas na cabeleira de alguns espectadores. Aí, a espontaneidade está a serviço da criação de uma atmosfera íntima em que as emoções são compartilhadas por todos, inclusive crianças.
Por trás das aparências, há sempre uma segunda história. Como diz o diretor Peter Brook em seu livro "O Espaço Vazio, o teatro popular, livre de uma certa unidade de estilo, fala um idioma muito sofisticado e elegante.
Uma audiência popular geralmente não tem dificuldades de aceitar inconsistências de sotaque ou figurino, ou em alternar rapidamente da mímica ao diálogo e vice-versa. O teatro popular usa tudo que vem à mão, como os pinos que a malabarista maneja com destreza sobre um monociclo.
Com essas ambições, revolucionárias para o momento, "Segundas Histórias não poderia deixar de ser, antes de tudo, um musical, com estrutura de fábula. Quem narra é uma cigana, representada por Rosana Almeida, que também desempenha outros papéis.
Enquanto conta a história, Rosana vai operando uma espécie de milagre. Quando a platéia dá pela coisa, está entregue, de volta à infância, embora também estejam ali generosamente à mão todos os elementos para que se perceba a magia em andamento.
"Segundas Histórias ministra ainda uma aula de amor ao Brasil e à teatralidade implícita no chamado jeito brasileiro, especialmente da maneira como se vive e se sonha no interior mais atrasado.
Quem for ver o espetáculo poderá ter clara demonstração da existência de um núcleo gerador dessas tradições sociais interioranas que dominam o imaginário nacional e que emerge no universo das novelas da TV, na música popular, nos programas de auditório e nos humorísticos.
A temática brasileira não é das menores transgressões que o teatro de Antonio nóbrega comete em seu trabalho. Ao contrário, identificar o Brasil nas peças, e desse desafio participam criadores como Romero de Andrade Lima, tornou-se um verdadeiro acinte.
Em sua ambição de criar o chamado teatro total, em que todos os elementos sejam usados ao limite com o objetivo de envolver e divertir o público, Antonio Nóbrega e Rosana Almeida direcionaram seu rigor para revisitar formas de representação consideradas antiquadas como o circo, a que juntaram elementos de pantomima e da Commedia dell'Arte.
Os resultados não poderiam ser melhores. O casal descobriu a força da sujeira, dos farrapos, da justaposição de imagens cômicas, sérias, belas e grotescas. Dessas invenções visuais parece surgir a possibilidade de que se atinja um círculo mais profundo de verdade ainda intocado.
Eles também celebram o papel central da performance. O apuro clássico é evidente em cada movimento de Nóbrega. O histrionismo pândego se derrama em cada movimento de Rosana.
"Segundas Histórias pode ser melhor definido por uma negativa. Não é chato. É um espetáculo excitante e inesquecível, que transforma nossa visão pela via do jogo e da diversão. Isso é subversivo. O público e o teatro agradecem.

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