São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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O outro lado do século

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A poesia produzida no Brasil neste século é dos poucos aspectos realmente fortes da cultura brasileira, ao lado da música popular, por ela, poesia, em muitos e decisivos momentos, influenciada. Basta citar os exemplos de Vinicius de Moraes com o samba e a Bossa Nova e o de Augusto de Campos com o Tropicalismo. Ilustra este diálogo a leitura que Tom Jobim fez, agora em seu último CD, ``Jobim" (1994), do poema ``Trem de Ferro" de Manuel Bandeira.
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Luiz Aranha, Raul Bopp, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meirelles, Patrícia Galvão, João Cabral de Melo Neto -para ficar com os que estrearam na primeira metade do século- não são menores ou menos universais que Ezra Pound, T.S. Eliot, William Carlos Williams, Wallace Stevens, E.E. Cummings, Marianne Moore e outros, valendo-me, no caso, da literatura norte-americana como termo de comparação por ser ela das mais orgânicas, críticas e expressivas.
A força da poesia aqui produzida -sempre com a independência e os recursos dos próprios poetas- não encontra paralelo, por exemplo, nas ciências, na música erudita ou, para mencionar algo legitimamente ``twenty", no cinema (com as exceções de Glauber, Nelson Pereira, Rogério Sganzerla etc) -no Brasil, uma indústria de sanguessugas do Estado.
Ocorrem-me estas observações a propósito do livro ``From the Other Side of the Century: A New American Poetry 1960-1990". Este livro -organizado pelo poeta e crítico Douglas Messerli- se propõe a ser uma antologia da poesia pós-moderna norte-americana, reunindo o trabalho de cerca de 80 autores, que estrearam ou ganharam projeção a partir dos anos 60. A quantidade de poetas, neste caso, não prejudica a qualidade -ao contrário, revela a variedade e diversidade de dicções, escolhas, caminhos seguidos a partir dos mestres do modernismo (Pound, Williams, Marianne Moore, Cummings etc).
Entre os autores elencados, há aqueles que -em maior ou menor escala- são conhecidos do público brasileiro: Louis Zukofsky (traduzido por Augusto de Campos), Allen Ginsberg, John Ashbery (traduzido por bons poetas como Duda Machado e Nelson Ascher e aqui presente ano passado numa iniciativa de Waly Salomão), Robert Creeley (por mim traduzido o ano passado), John Cage (traduzido e amplamente divulgado por Augusto de Campos). A maior parte -como se vê- é desconhecida por aqui. O que não é demérito, já que os próprios brasileiros são desconhecidos do público brasileiro.
A antologia privilegia objetivistas (descendentes de Williams, por exemplo), neo-objetivistas e ``language poets", excluindo, por exemplo, os beats, nela representados unicamente por Allen Ginsberg. Há ausências com as de Gregory Corso ou Gary Snider, pertencentes à geração de Ginsberg e Creeley. As ausências entretanto não prejudicam em nada a qualidade do trabalho -que abre uma lente ao mesmo tempo intensa e panorâmica sobre a poesia pós-moderna norte-americana tão forte quanto o teatro, o cinema, as ciências, a música etc.
Uma das vantagens desta antologia é que nela se estampam trabalhos de poetas vivos e relativamente jovens em sua maioria. O livro abre com os textos de Charles Reznikoff (1894-1976) -um autor que retrabalha, com voz rural, a moderna história norte-americana (``O garoto, de onze ou doze/um garoto vivo/trabalhou para ele por quatro ou cinco anos/(...)/Mas ele apanhou o garoto roubando/ E o amarrou nu/E o chicoteou..."). Em seguida, vem o trabalho de Lorine Niedecker (1903-1970). De Niedecker, traduzi o poema ``Se Eu Fosse Um Pássaro" -tributo ao primeiro modernismo, que influenciou quase todos os elencados na antologia.
Uma antologia ``semelhante" a esta feita aqui no Brasil reuniria necessariamente os trabalhos de Ferreira Gullar, José Paulo Paes, Afonso Ávila, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Manuel de Barros (trabalho ``semelhante" ao de Reznikoff), Sebastião Uchoa Leite e também o dos que hoje estão com cerca de 50 anos -para ficar só com os mais velhos- como Duda Machado, Paulo Leminski, Torquato Neto e outros. É escassa, muitas vezes raivosa, e pobre a discussão sobre a poesia pós-moderna brasileira. Excelentes críticos como Antonio Candido e Haroldo de Campos se dedicaram básica e heroicamente a estudar o modernismo.
Um dos méritos do trabalho de Douglas Messerli é o de reproduzir uma significativa quantidade de poemas de cada autor. Há, por exemplo, no livro, trechos do ``Maximus Poems", de Charles Olson, na linha dos ``Cantos", de Ezra Pound. Há uma boa quantidade de trabalhos de Robert Duncan (1919-1988). Duncan é considerado por uma crítica de envergadura como Denise Levertov como o maior poeta norte-americano pós-moderno, ao lado de Creeley. Dele traduzi um poema em prosa (``Estrutura da Rima"). No livro está o famoso poema ``Thing Language" de Jack Spicer, já morto: ``No one listens to poetry". De Larry Eigner -ainda falando dos mais velhos- traduzi o poema ``De Volta a Isto". Ele pertence ao grupo da ``Black Mountain Review", do qual faz parte também Creeley -o mais extensamente por mim traduzido. Uma poesia de linguagem, de intimidade com a língua, ao mesmo tempo rica em elementos vitais: a natureza ou antinatureza urbana, os dados biográficos, a subjetividade, a ironia, são traços comuns de quase todos os poetas.
Entre os mais novos, traduzi um poema de Diane Ward, nascida em 1956. Há autores excelentes como Cristhopher Dewdney, nascido em 1951. Em ``Springs Trances", ele tematiza o Brasil: ``Purple and lime the Brazilian nights jewelled insects beads the lights". Mesmo entre os novíssimos -que fazem uma espécie de teatro-poema-performance- não há poemas visuais. Prosa poética e poema estrito senso predominam.
Há bastante experimentalismo como no trabalho de Alice Notley, nascida em 1945. Jerome Rothenberg -hoje um nome já internacional- está presente. Tina Darragh, nascida em 1950, produz vinhetas líricas sobre a linguagem: ``a hiperbola/lançada além da medida/a hipérbole/exagero". Registrem-se ainda as presenças de Michael Palmer e Frank O'Hara.
A poesia brasileira -por sua consistência e originalidade- pode dialogar com a poesia norte-americana ou com a francesa ou com a alemã, neste século, apesar de todas as adversidades políticas, econômicas etc. Neste momento, deveria dialogar e avançar em suas próprias discussões. Em todo caso, é um exemplo para algumas áreas do país, ainda dominadas pela barbárie e pelo ``garçom de costeletas" de que falava Oswald de Andrade.

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