São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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As onomatopéias galiformes

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Se houvesse -e deveria haver- algum tipo de premiação para textos impenetráveis, um dos candidatos mais sérios deste ano, segundo Cláudio Figueiredo, editor do suplemento ``Idéias" do ``Jornal do Brasil", seria o recém-lançado ``Mil Platôs", de Gilles Deleuze e Félix Guattari (editora 34). Leia com seus próprios olhos o trecho a seguir:
``O agenciamento maquínico é completamente diferente, se bem que em estreita relação: primeiro, ele opera as co-adaptações de conteúdo e expressão num estrato, assegura as correlações biunívocas entre segmentos de ambos, pilota as divisões do estrato em epistratos e paraestratos -depois, de um estrato a outro, assegura a relação com o que é subestrato e as correspondentes mudanças de organização- finalmente, ele é voltado para o plano de consistência porque efetua necessariamente a máquina abstrata em tal ou qual estrato, entre os estratos e na relação destes com o plano".
Impressionante, não? O diabo é que, mesmo inserido em seu contexto, ou seja, lidos os parágrafos que o antecedem e procedem, o citado aranzel não adquire a clareza que todo e qualquer texto deve buscar.
Em carta ao "JB, o professor de filosofia mais badalado do Rio, Cláudio Ulpiano, tomou a defesa de Deleuze e Guattari. Para ele, ``Mil Platôs" não é impenetrável, mas apenas difícil, pois ``a filosofia é difícil" como, repetindo os seus exemplos, a música atonal, o expressionismo abstrato e os filmes de Alain Resnais.
Não bastasse, seria próprio do filósofo, segundo o professor, experimentar a linguagem e impor dificuldades à compreensão do que diz.
Tenho cá minhas dúvidas, talvez por ser mais jornalista do que um estudioso de filosofia. Sim, a filosofia é difícil. Mas me parece que, quanto mais difícil ela é, maior o mérito daqueles que se esforçam para descomplicá-la. Deleuze e Guattari, pelo visto, ou não se esforçaram, ou se esforçaram muito pouco.
Certamente deve haver um jeito menos alambicado de se arrazoar sobre o ``agenciamento maquínico" sem empobrecer os conceitos que o fundamentam.
E eu me pergunto se o estilo pedregoso de Deleuze e Guattari não faz parte de uma estratégia para intimidar o leitor e deixá-lo complexado, sem confiança para questionar o que por ventura mereça ser questionado.
A indultá-los o fato de ``Mil Platôs" ser, afinal de contas, um livro, artefato de consumo restrito, leitura para iniciados. Se agora aqui pudesse estar, George Orwell diria que, nem protegido por uma lombada, ninguém tem o direito de escrever de forma empolada.
Autor de um célebre ensaio sobre a verborragia e outros maus tratos sofridos pela língua inglesa, Orwell deu-se ao luxo de imaginar como trechos do Eclesiastes e uma frase histórica de Lorde Nelson (``A Inglaterra espera que cada um cumpra com o seu dever") ficariam se escritos por alguns dos seus contemporâneos.
A do lorde ficaria assim: ``A Inglaterra anseia que, tendo em vista a presente situação de emergência, todas as pessoas exercitem apropriadamente as funções alocadas aos respectivos grupos a que pertencem".
Para bobagens como esta temos uma expressão (rui-barbosismo), infelizmente sem a força e a popularidade da que os americanos costumam usar quando surpreendidos por um palavreado afetado: ``gobbledygook" (leia- se goboudiguque).
Como o fim do Terceiro Reich, ela acaba de completar 50 anos de idade. Apesar da pinta swiftiana, foi criada por um congressista de Washington, cansado do blablablá dos burocratas da capital norte- americana. Sua origem, ao que consta, foi o gluglu dos perus -ou uma onomatopéia galiforme, como talvez preferisse dizer o professor Antonio Houaiss.
Confesso que foi em parte para comemorar o jubileu de ``gobbledygook" que coloquei os perus Deleuze & Guattari na roda. Poderia arrolar outros despautérios, pinçados, principalmente, de divagações psicanalíticas, mas, como não estou a fim de lacanagem, fecharei este Ponto Crítico falando de outra invenção gringa, convenientemente relacionada com o gluglu.
É um aparelho. Não sei que forma tem, mas deve ser parecido com um projetor, caso contrário não se chamaria ``Systematic Buzz Phrase Projector". Ou seja, um instrumento ótico que nos municia de palavras e expressões pernósticas, ao simples apertar de um botão.
A patente pertence a um empregado da Saúde Pública dos EUA e é de se esperar que, a esta altura, já exista uma versão da engenhoca atualizada à era da informática.
Seu estoque de vocábulos, jargões e frases de efeito atende a uma imensa variedade de assuntos. Quando se aperta o numero 257, por exemplo, aparece a expressão ``projeção logística sistematizada". Esta é daquelas que se encaixam em qualquer tipo de relatório.
O efeito, asseguram, é infalível. Ninguém entende, mas como tem vergonha de admitir que não entende, engole o palavrório e ainda faz cara de quem se impressionou com a seriedade e a profundidade do que acabou de ler.
A mesma cara que alguns fazem ao ler que ``o agenciamento maquínico opera as co-adaptações de conteúdo e expressão num estrato, assegurando as correlações biunívocas entre segmentos de ambos". Desde que, evidentemente, submetidas a uma projeção logística sistematizada.

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