São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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ECO-LOGIA

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

O telefone de Umberto Eco em Milão é de fácil acesso. E, de manhã, uma secretária eletrônica atende. Mas é uma armadilha: ele não escuta os recados. A gravação é proposta só para tranquilizar quem liga e, desta forma, convencido de ter deixado o seu recado, ele não ligar mais.
O fax, ao contrário, funciona, mas com um detalhe: qualquer um acima de duas páginas é destruído por razões ecológicas. Mesmo assim, não foi difícil aproximar de Umberto Eco. Marshall Blonsky -companheiro de Eco de velha data e um dos pioneiros da semiótica nos EUA, no começo dos anos 50- permitiu o contato; a simpatia de Eco pelo Brasil (lembre-se a parte de ``O Pêndulo de Foucault" que acontece no Rio e na Bahia) fez o resto.
Depois da entrevista -feita no final de abril, no dia seguinte à palestra que fez na Columbia University, nos EUA- acompanhei Eco até seu ``pied-à-terre" nova-iorquino, onde mora seu filho Stefano, na 12th Street. Num dia de sol, atravessando Union Square, a entrevista terminada, a conversa foi para onde devia: a paixão bibliofílica, os melhores lugares para caçar livros em Nova York, as pérolas de sua biblioteca.
É esta a lembrança de Eco com a qual fico: no meio de Manhattan, um ``organizer" eletrônico no bolso, bem no seu tempo, o ouvido e o olhar atento ao variado desfile da vida, um bibliófilo leitor, apaixonado pelos saberes que fazem nossa história e o que somos.

Folha - Seu último romance, "A Ilha do Dia Anterior, esteve em fevereiro e março em primeiro lugar na lista dos best sellers no Brasil, segundo pesquisa da Folha, e em abril na sétima posição. É um evento, pois esta lista costuma compreender livros que se situam entre a auto-ajuda e o ocultismo.
Quem sabe sua palestra de ontem ajude a mudar as coisas: o sr. dizia que um dos traços do fascismo eterno é o sincretismo, encontrar Santo Agostinho na mesma estante com Stonehenge. Além disso, a questão do sincretismo no Brasil é delicada...
Umberto Eco - Um esclarecimento. Cada forma de fascismo é sincretista, mas isso não significa que cada forma de sincretismo seja fascista. Como você sabe, em "O Pêndulo de Foucault há um episódio brasileiro, onde descobri que sou um filho de Oxalá. Mas, por mais que tenha simpatia pelas religiões afro-brasileiras, trata-se de sincretismo, ou seja, da mesma coisa da qual eu falava ontem.
Nossa cultura e a educação em nossa cultura são fundadas na capacidade de se fazer distinções. Esta coisa é diferente daquela. Em certas situações, pode-se decidir que as duas coincidem ou se equivalem, por exemplo, ao fazer uma metáfora. Mas, fundamentalmente, trata-se de saber dizer que isto não é aquilo.
Nós marcamos um encontro às 10h e, de fato, nos encontramos às 10h porque compartilhamos esta imperfeita subdivisão do tempo dada pelos relógios. Sabemos que o tempo é um fenômeno mais complicado do que isso, mas, se não partimos do tempo dos relógios, não podemos interagir.
O ocultismo pode pensar que o tempo seja um mistério que vai muito além dos cronômetros. Por que não? Talvez tenha até razão. O problema não é o ocultismo, mas o sincretismo, que confunde os dois tempos: acaba-se tão convencido que o tempo é mais do que isso, que se joga fora o relógio.
Folha - Então nos encontraríamos com certeza quando a distância, conjunções astrais e telepáticas nos reunisse. Quem sabe estas observações encorajem a organizar melhor a estante dos best sellers. Mas, considerando a trilogia de seus romances até agora, "O Nome da Rosa -romance medieval- concerne à procura de um pedaço faltante da tradição e os outros dois são romances modernos: ``A Ilha do Dia Anterior" acontece no século 17 e "O Pêndulo de Foucault é contemporâneo...
Eco -...contemporâneo, mas histórico, de uma certa forma.
Folha - Certo, mas ambos pertencem ao mundo moderno. Nestes últimos dois, então, o pedaço faltante não é um fragmento da tradição. É um ponto fixo que precisa ser procurado ou mesmo construído: quer seja a verdade sobre o tempo e o espaço (em "A Ilha do Dia Anterior), quer seja a verdade sobre a significação (em "O Pêndulo).
A tradição não é mais, para nós modernos -como ainda podia ser na Idade Média-, a referência suficiente para viver. Como o sr. observava a propósito do tempo, hoje interagimos por convenção, não por referência comum à tradição. Por consequência, procuramos "pontos fixos tanto mais dramaticamente quanto eles são incertos, bem mais arbitrários, de certa forma, do que um ditado tradicional.
Eco - Minha atitude frente à tradição é a seguinte: estudei muito Aristóteles e a Idade Média e fui sempre fascinado pela história da filosofia. Nunca fui contra a tradição. Sou contra o tradicionalismo, que é algo diferente. Posso estudar e respeitar a religião muçulmana, sem ser um fundamentalista muçulmano. O tradicionalismo é um fundamentalismo da tradição, onde a tradição deve ser aceita como um todo, sem fazer distinções, sem discutir.
E há uma maneira de propriamente respeitar a tradição, embora fazendo distinções. Por exemplo, minha tese de doutorado, meu primeiro livro sobre a estética de Tomás de Aquino, era certamente um ato de amor pela maneira medieval de ver a beleza e a arte, mas sem deixar de fazer distinções.
Por exemplo: não acreditem que Aquino disse coisas parecidas com o pensamento contemporâneo, também não pensem que Aquino dizia a mesma coisa que Alberto Magno -eles diziam coisas diferentes. Esta é uma relação respeitosa com a tradição, sem sugá-la para beber seu sangue. A tradição pode ser respeitada sem cair no tradicionalismo, que é um fundamentalismo.
Meus romances têm algo em comum, à parte o fato de que foram escritos pela mesma pessoa, o que já é muito. Eles são os três "Bildungsroman, romances de formação, como em Goethe, em Thomas Mann.
Fui um educador toda a minha vida. Ainda me fascina o processo de educação, o jovem que descobre algo na sua relação com um mestre. Provavelmente, se escrever um outro romance, ele será um outro "Bildungsroman, porque, parece, sou incapaz de pensar narrativamente de uma outra maneira. Se é que há outra maneira. Pois, talvez cada romance seja de fato um "Bildungsroman, a história de uma formação. Mesmo o "Chapeuzinho Vermelho é um "Bildungsroman: no fim a menina entende mais sobre a vida, os passeios nos bosques, os lobos e as avós.
O romance pode sublinhar mais tal ou tal aspecto da "Bildung, pode insistir sobre a "Bildung sexual ou outra. Eu, evidentemente, concentro-me sempre na "Bildung intelectual.
Folha - Isto é, acredito, uma resposta indireta à minha pergunta. Pois a própria idéia da vida como "Bildung, como formação, é uma idéia moderna, bem distinta da idéia da vida como iniciação em uma tradição. Mas gostaria de falar agora sobre o atentado de Oklahoma, ocorrido no dia 19 de abril. Como o sr. sabe, nestes dias, os Estados Unidos estão em luto...
Eco - Organizei minha fala de ontem na Columbia University também pensando nisso. O público deve ter entendido.
Folha - A primeira reação da opinião foi pensar que o inimigo fosse islâmico, ou seja, o fundamentalista, o tradicionalista como inimigo da democracia. Desta vez o inimigo é interno.
Eco - Mas este inimigo interno é uma forma americana de tradicionalismo, com tudo o que precisa: uma teoria do complô, etc.
Folha - É bem possível, mas é um tradicionalismo paradoxal, ou, pelo menos, que produz um paradoxo. Se as suspeitas se mantêm -e já são, ao que parece, mais que suspeitas- os acusados, simpatizantes das milícias, inimigos do governo central, representam de uma certa forma o espírito do individualismo ocidental e americano. Na milícia do Michigan há sem dúvida uma série de elementos do que o sr. chamava ontem de "ur-fascismo.
Mas, ao mesmo tempo, a milícia levanta e torna agudo um debate que, não só nos EUA, espreita as democracias contemporâneas: mais ou menos governo? É a contradição da democracia desde Rousseau até hoje: feita para responder aos anseios do indivíduo, por ser governo, ela limita necessariamente a liberdade individual. Não é por acaso, aliás, que a contradição toma sua forma violenta logo aqui nos EUA, na ponta do individualismo da cultura ocidental contemporânea.
Eco - Pensava justamente em Rousseau quando ele dizia que, se a "pólis não é pequena, não pode haver uma democracia por assembléia popular. Se a "pólis é pequena, os cidadãos vão para a praça e todos sabem do que estão falando. Quando o corpo social é maior, não há possibilidade de verificar diretamente a opinião dos cidadãos, é preciso recorrer a um sistema representativo.
Isso, por si só, não seria um problema de tão difícil solução. Mais grave é a dificuldade, para os cidadãos, de chegar a uma vontade e, sobretudo, a uma idéia comum do bem. Pense no nascimento dos grandes Estados nacionais europeus. Foram e só podiam ser, no começo, Estados absolutos. Os cidadãos do Languedoc mal podiam saber qual era o bem para a ×le de France, ainda menos imaginar um bem comum a eles e à ×le de France. Nesta época, aliás, nem compartilhavam uma língua comum.
Então, a primeira solução foi o absolutismo. Logo, as democracias parlamentares, por um lado, tentaram testar a opinião dos cidadãos pelas eleições representativas. Por outro lado, tentaram fazer com que os cidadãos fossem mais e melhor informados sobre o bem comum: inventaram jornais e gazetas. Mas é um equilíbrio difícil.
Você tem aqui, nos EUA, por exemplo, um estado multirracial, multicultural, e uma enorme quantidade de informação, mas, por isso mesmo, difícil de ser filtrada, selecionada. Sempre digo que não há diferença substancial entre o "The New York Times de domingo e o "Pravda.
O antigo "Pravda não carregava nenhuma informação. O "The New York Times de domingo carrega todo tipo de informação, mas é de tal tamanho que uma semana não é suficiente para lê-lo inteiramente. Entre nenhuma informação e informação demais, o risco é ficar não informado. Ou de selecionar as informações ao acaso -o que dá no mesmo.
O problema da democracia, então, é que os cidadãos não conseguem mais compartilhar uma noção do bem comum. Qual é o possível bem comum entre o dono de loja paquistanês aqui na esquina e os pequenos burgueses do Michigan? Os pequenos burgueses do Michigan não são absolutamente antigovernamentais, eles são contra o governo cada vez que uma decisão dele contrasta com seus interesses particulares e eles não conseguem compreender como esta decisão poderia servir a algum bem comum. É difícil o percurso racional para entender que um hospital para porto-riquenhos pode ser uma vantagem também para eles.
Assim, vivemos em um período no qual a própria noção de democracia talvez arrisque ser profundamente transformada. E não sabemos de que jeito. Talvez nossa concepção de democracia fosse possível desde o século 17 até ontem, e hoje esteja em crise.
Folha - Estaríamos, então, na necessidade de dar consistência a uma opinião pública, em dois sentidos: permitir que ela se manifeste como fonte de autoridade -medida quantitativamente - e permitir que se constitua, por ela, um bem comum necessário.
Há uma certa contradição entre estas duas tarefas, a não ser que a gente acredite nos poderes ilimitados do diálogo. No mínimo, pode-se constatar que o pretenso debate entre quantidades diferentes na opinião pública está sempre exposto ao que o sr. chamava ontem de "populismo qualitativo.
Eco - É a retórica ou técnica do "exemplum. Toma-se um caso singular e se sugere que representa a generalidade. Usa-se o exemplo como indicador e, imediatamente, ele se torna representativo da opinião geral. É um erro do melhor jornalismo.
Nós nos queixamos, na Itália, do fato de que nossos jornais encorajam exageradamente a dar a opinião do jornalista mais do que a opinião das pessoas. Ao contrário, o artigo ``standard" em um jornal americano prefere apresentar opiniões divergentes: "Sobre esta questão não concordo, nos confiou Fulano; mas "Oh, não, eu concordo, disse Sicrano. A impressão assim produzida é de oferecer ao leitor uma visão balanceada de duas diferentes opiniões.
Isto é correto, mas frequentemente não é verdadeiro, pois imagine que Fulano represente 80% dos cidadãos e Sicrano 20%. O fato de propor as duas opiniões como duas citações objetivas não dá nenhuma imagem da situação real. Uma vez mais é a técnica do "exemplum.

Continua à pág. 5-5

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