São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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ECO-LOGIA

CONTADARDO CALLIGARIS

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA DE NOVA YORK

Continuação da pág. 5-5

Folha - Mas é um instrumento...
Eco - Se algo é universal é a necessidade de narrar, uma necessidade biológica. Psicólogos e historiadores já estão mostrando que a narratividade talvez seja a maneira como o próprio mundo mental se constitui.
Folha - Qual é a extensão deste departamento, a semiótica?
Eco - Não gostaria de estabelecer suas fronteiras. Considero a semiótica um espaço aberto. O avanço das ciências cognitivas ampliou também o espaço da semiótica. O erro de muitos consiste em identificar o espaço semiótico com uma semiótica particular. Por exemplo, Sperber e Wilson, em seu belíssimo livro sobre inferência, acusam a semiótica de não ter suficientemente levado em conta os processos de inferência. Eles estão pensando só em uma certa semiótica estrutural francesa; mas a semiótica de Peirce (sobre a qual está fundada a minha) é toda baseada no conceito de inferência.
Folha - Por aberto que seja este espaço, existe no mínimo uma certa tensão entre, por exemplo, de um lado a semiótica de Greimas e do outro o desconstrucionismo....
Eco - Eis o caso de dois excessos. A semiótica greimasiana (talvez mais aquela dos greimasianos do que aquela de Greimas) é muito sistemática, deixa pouco espaço a outras possibilidades. Na França, aconteceu assim o caso curioso de pessoas como Tzvetan Todorov, que a um dado momento é como se tivesse abandonado a semiótica (ou não é mais considerado um semiótico), quando de fato as coisas belíssimas que ele escreve dependem muito de sua formação semiótica.
O outro excesso é desconstrucionista. Aqui também a responsabilidade está mais com os derridianos americanos do que com o próprio Jacques Derrida (sempre digo brincando que a ``deconstruction" é um produto americano sob licença francesa). O desconstrucionismo convenceu os americanos que a única arte semiótica consiste em fazer dizer aos textos o que sugerem nossos desejos. Perdeu-se o respeito ao texto, ao seu fundo cultural, à sua estrutura. O desconstrucionismo produziu muitos outros excessos, entre os quais os do multiculturalismo.
Folha - Não é atribuir muito ao desconstrucionismo?
Eco - Quando se diz que é preciso fazer uma leitura feminista ou africana de Homero e que é ruim um africano entender o mundo de Homero (quero dizer, os códigos culturais da Grécia daqueles tempos), isto não é um bom negócio para o estudante afro-americano.
Ao contrário, ele é privado, assim, de uma parte da consciência crítica. Nós, ocidentais, estaríamos errados se lêssemos o Alcorão sem tentar entender o código islâmico. Esta atitude não garante forma de liberdade alguma ao jovem africano: ao contrário, é uma maneira de não ajudá-lo a compreender o espírito desta civilização ocidental com a qual ele tem justamente que lidar.
Folha - A psicanálise provavelmente ambicionaria ser uma disciplina ou um departamento em si. Mas, se não fosse, me parece que encontraria lugar num departamento ideal de semiótica. No Brasil, há grupos bastante significativos de psicanalistas -digamos pós-lacanianos- reformulando a experiência e a teoria psicanalítica pela pragmática e a teoria da narratividade.
Eco - Isto é muito interessante. O diálogo com a psicanálise de fato aconteceu pouco. Embora eu tivesse uma relação bem amigável com Jacques Lacan. Em 1972 ou 1971, fui escutar em Milão uma palestra de Lacan. Ao fim, coloquei uma pergunta. E alguém lhe murmurou no ouvido: ``É Umberto Eco". Parece que ele queria me encontrar porque sabia que, em "A Estrutura Ausente, meu último livro na época, eu o criticara.
Lacan, no fim da reunião, veio até mim, me apostrofando: "Meu caro Eco, quero ver você. Ele insistiu para que almoçássemos juntos no dia seguinte. Quando ele voltou a Milão, ofereci um ``party" para ele. Foram encontros deliciosos, mas sem nenhuma troca propriamente científica.
No congresso de Milão de 1974, Lacan, que ninguém tinha pensado em convidar, veio por sua conta, e para nós foi uma coisa importante, uma forma de reconhecimento em um momento delicado para nossa disciplina.
Folha - Não é de estranhar. Imagino que o interesse de Lacan nem fosse tanto discutir as críticas que o sr. lhe dirigia. De fato, ele sempre foi circundado por tantas pessoas que o amavam com a cega e estafante fidelidade de cachorros, que devia ser um verdadeiro descanso falar com alguém que não estivesse na mesma.
Eco - Certamente, por isso só podia estar interessado em uma crítica.
Folha - Tornou-se uma tradição lhe perguntar algo sobre as mídias modernas e a informática, desde a paixão pelo computador que apareceu em "O Pêndulo de Foucault. Sobre este tema, aliás, sua distinção entre apocalípticos e integrados parece valer ainda. Para evitar as questões clássicas e um pouco insípidas, só uma pergunta: o sr. acha que todo o barulho contemporâneo sobre novas mídias é mais do que uma recente versão da eterna questão sobre as "ameaçadoras e "alienantes transformações produzidas pela técnica?
Eco - Ninguém pode escrever hoje uma teoria das mídias, porque é como fazer uma teoria da semana que vem. Não dá para escrever uma teoria do futuro, mesmo que você seja futurologista...
Folha - ... dá para vendê-la...
Eco - Mas não dá para fazê-la. Uma teoria da Internet feita hoje, será ultrapassada daqui a três meses. Só dá para elaborar, considerar criticamente, mas não se pode fazer profecias.
Em Bolonha, no curso de ciência da comunicação, profiro cada ano uma palestra inicial e, nesta ocasião, digo aos estudantes: não podemos lhes ensinar propriamente nenhuma técnica ou disciplina, pois no fim do curso cada técnica estará ultrapassada. Podemos lhes ensinar só o tipo de atitude kantianamente transcendental para entender, no fim de seus cinco anos, o que então acontecerá.
Não se pode fazer profecias. Por exemplo, é preciso achar novas técnicas para selecionar a informação. Não há como dizer: amanhã, a informação será assim e assado, porque não sei qual será a resposta -quero dizer, quais serão os atos- das pessoas que vou justamente encorajando a elaborar técnicas para selecionar a informação. Em relação ao futuro, posso identificar uma tendência, mas, sobretudo, trata-se de estabelecer uma prática.
Posso e devo intervir e, se minha prática tiver sucesso, ela produzirá ou contribuirá para produzir uma nova geração que poderá fazer escolhas, talvez contrárias à tendência que podemos constatar e eventualmente recear.
Folha - No próximo século, o sr. não acha que poderá ser escrito um romance no estilo de Umberto Eco, uma espécie de "Bildung policial, onde o protagonista procurará seu caminho no labirinto de todas as teorias semióticas deste século, de Saussure a Lacan, via Quine e Ogden-Richards, assim como o sr. usou o ocultismo rosa-cruz ou as teorias seiscentistas do tempo e espaço?
Eco - É uma boa idéia, vou pensar nisto.

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