São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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ECO-LOGIA

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Eco - Eu sempre fui contra a idéia dos universais semânticos. Embora, ultimamente, comece a acreditar que existam universais semânticos, com referência ao corpo no espaço.
Folha - O sr. nunca foi chomskiano.
Eco - Não. Mas não sei se há um desacordo. Minha posição é: começamos pelo corpo. Posso demonstrar que, começando pelo corpo, chegaremos às mais altas expressões da espiritualidade, como a liberdade de palavra. A referência ao corpo é importante porque nenhuma ditadura pode paralisar nossa possibilidade de pensar, mas eles podem impedir nossa possibilidade de expressar este pensamento com a língua. O controle físico afeta os valores espirituais.
Folha - Sem dúvida, o controle sobre o corpo afeta os valores morais. Mas minha questão é outra. A procura de um ponto fixo ético é certamente um dos problemas centrais da modernidade. Digo da modernidade porque, antes disso, a tradição se encarregava de resolver esta questão. Para o homem pré-moderno, o fundamento ético é geralmente divino. Nós, modernos, não sabemos mais de onde vêm os valores.
Uma das tentações de nosso século é procurar fundá-los no mundo físico e, por exemplo -é a resposta que você sugere-, no corpo como universal. Meu sentimento é que não há como passar da fisiologia à ética. A fisiologia -assim como a biologia, por exemplo- certamente introduz um número de questões éticas, mas não por isso é possível deduzir princípios éticos a partir do corpo.
Eco - Nenhuma ditadura pode controlar meu coração. A tradição judaico-cristã tentou controlar isso também, com o nono mandamento -que é bem diferente do sexto ("não cometer atos impuros) e diz: "Não desejar a mulher do outro.
Há a piada do homem que vai se confessar e conta ao padre: "Devo lhe dizer que ainda faço amor com minha mulher, agora ela passou dos 60 e eu também não sou mais um garoto... Sabe como é, nos momentos decisivos, sonho sempre com Marilyn Monroe. E o padre lhe responde: "Viu como ajuda?
O sonho interno, a fantasia, são permitidos porque não podem ser coibidos. Ao contrário, se amo Maria, deve ser um direito universal poder casar com ela; isso é universal e depende do corpo. Naturalmente, meu direito pode ser controlado por uma espécie de contrato, por exemplo, de fidelidade mútua entre Maria e eu.
Mas não pode ser controlado o fato que, durante a noite com Maria, eu comece a sonhar com Jane. Assim, não tem sentido dizer que tenho o direito universal de sonhar com Jane, o que importa é que meu corpo seja livre para casar com Maria, se ela consente e quer. O que também não pode ser feito é pegar sua mulher e vendê-la no mercado de escravos de Damasco.
Folha - Resta que poderia haver culturas onde é autorizado vender Maria no mercado de Damasco ou em outro. Não por isso eu concordaria, só quero dizer que os direitos em questão não são "deduzidos do corpo. Eles são, isso sim, direitos de liberdade física, do corpo, mas necessariamente inspirados culturalmente, são os direitos de nossa cultura. Eles não são biologicamente deduzidos.
Eco - Esta história, de qualquer forma, é um mal menor, como a democracia. Não pretendo que todos os valores possam ser deduzidos do corpo. Há muitos outros que não podem, mas, para chegar a um acordo entre eu e um esquimó ou um argelino, provavelmente, se começarmos por nosso direito de usar o corpo, encontraremos alguns valores universais. ``Não cometer estupro", porque seria usar o corpo do outro sem sua permissão. "Não mentir já não é universal; por exemplo, para escrever um romance, você deve mentir, é encorajado a mentir. Então, a sinceridade não é um valor universal. Você pode ser também encorajado a mentir a um paciente terminal de câncer. Não cometer atos impuros, uma vez que você definiu os atos impuros, pode ser um valor universal. Não desejar a mulher dos outros não é um valor universal.
Folha - Como dizíamos, isso é algo que o sujeito mesmo não pode controlar.
Eco - Além do mais, ele pode ser elogiado por desejar a mulher do outro. Se você for um poeta, Petrarca por exemplo, será elogiado porque desejou a mulher do outro. Ah, que bonito, congratulações -à condição que não tenha cometido atos impuros com ela.
Folha - Há muito tempo atrás, em 1974, nós nos encontramos em um congresso de semiótica, em Milão.
Eco - - Tinha seu nome na cabeça, mas não a sua cara. Mas as nossas duas caras mudaram sem dúvida bastante.
Folha - Nesta época, e ainda mais nos anos seguintes, quando o sr. publicou o "Tratado Geral de Semiótica, para a parte do grupo francês do qual eu me aproximava (frequentava Roland Barthes e o grupo Tel Quel), o seu nome era associado a uma semiótica ``linha dura", que na verdade não gostávamos.
A semiótica constituída no fim dos anos 70, reconhecida como disciplina, que acabou entrando nas melhores universidades, o que é ela hoje para o sr.? Pergunto isso, considerando que se fala bastante do fim do estruturalismo, da volta da hermenêutica, da narrativa, de um retorno à problemática do sujeito.
Eco -... a desconstrução, a nova pragmática...
Folha - Há um clima de fim de ciclo: o estruturalismo foi uma bela aventura, mas não resolveu as múltiplas questões da subjetividade. No meio de tudo isso, Umberto Eco passa a escrever romances. Não deve ser por acaso. O que é, o que sobra da semiótica como disciplina hoje?
Eco - Primeiro, na época pensávamos que a semiótica pudesse ser ou vir a ser uma ciência.
Folha - Engraçado, na época pensava-se a mesma coisa da psicanálise.
Eco - Minha opinião, hoje, é que a semiótica não é uma ciência. É um departamento, o nome de um departamento. Como a medicina. A medicina não é uma ciência, é um departamento onde há biologistas, geneticistas, cirurgiões etc.
Trata-se de aceitar esta variedade de enfoques e de mantê-los juntos, porque todos pertencem, todos participam da mesma "virada linguística, mas sem por isso acreditar que constituam uma mesma ciência.
Em segundo lugar, há um "trompe l'oeil. Não é suficiente que um francês diga que a semiótica está morta para que a semiótica esteja morta. E acontece frequentemente que as bolsas de cultura são estabelecidas pela declaração inspirada de um "scholar francês.
Folha - Pensa em alguém em particular?
Eco - Não, no caso sou genericamente racista. Estou brincando, mas é uma posição justificada em relação a este país que, por outro lado, adoro. Tome o exemplo da lógica medieval. Segundo todos os manuais que estudamos na escola, no fim do século 14 a lógica medieval está acabada, chega o neoplatonismo da Renascença e o panorama mudou. Ora, nos séculos 15 e 16 as escolas de lógica continuaram. E nossos lógicos, hoje, ainda seguem esta tradição que nunca morreu.
Cada vez que, nesta confederação de interesses que chamo a escola semiótica, alguém encontra algo novo, parece que acaba pensando que os outros caminhos estão, por isso mesmo, abolidos. Se tivesse que reescrever hoje o "Tratado, colocaria em dia a primeira parte, retomaria a segunda tal qual e -mudança principal- acrescentaria uma terceira.
Elaborei, desde então, uma idéia da estrutura narrativa da representação semântica, pela qual cada tipo de saber é organizado narrativamente. Gostaria também de explicar por que, sobre certos problemas, decidi falar narrativamente e não filosoficamente.
Folha - Neste caso, imagino que o sr. pense agora, que "a língua -no sentido de Saussure-, é uma ficção, e só existe a palavra... Certamente, junto com a fé no conceito de "língua, vai-se embora também a idéia da semiologia como ciência.
Eco - Até o átomo é uma ficção, é uma invenção de Niehls Bohr. Não estamos certos que o átomo exista. Quem sabe, descobrindo novas línguas polinésias, descobriremos não sei o quê, que tal outra noção crucial deveria ser corrigida. Agora, o conceito de "língua, todavia, é um bom instrumento para entender as funções básicas de uma língua. Se você tem que analisar a estrutura interna de uma língua, Hjelmslev é ainda um bom instrumento.

Continua à pág. 5-6

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