São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Comunidade Solidária _o desafio e a oportunidade

RUTH CARDOSO

O Brasil atravessa um período particularmente desafiador no campo das políticas sociais.
Como é amplamente conhecido, o país experimentou, no passado, elevadas taxas de crescimento econômico e de mudança social que alteraram a sua face, transformando o Brasil numa importante nação urbano-industrial.
Infelizmente, esse padrão de crescimento e as vigorosas transformações não foram suficientes para eliminar profundas desigualdades sociais e regionais do país.
A década de 80, considerada na América Latina como a década perdida do ponto de vista do desenvolvimento econômico, assumiu, no Brasil, uma face especial.
Em primeiro lugar, iniciou-se um processo de intensa modernização e reestruturação do sistema produtivo, com significativos aumentos de produtividade, reorganização empresarial e crescente participação no sistema internacional.
No curto prazo, a modernização vem tendo impacto contraditório sobre o mercado de trabalho.
Por um lado, o surgimento de novas atividades mantém as oportunidades de emprego para alguns grupos -como as mulheres e os jovens. Por outro, apresenta uma tendência latente de ser fortemente economizadora de mão-de-obra, aumenta de forma significativa os requerimentos de qualificação para se ingressar nos núcleos mais estáveis e produtivos do mercado de trabalho e torna vulneráveis, ou mesmo obsoletos, alguns segmentos ocupacionais.
Novas desigualdades e vulnerabilidades se agregam às heterogeneidades já existentes, merecendo especial atenção o crescimento de um significativo contingente de brasileiros que vai se tornando não-empregável, o surgimento de novas formas de desigualdade regional e o agravamento das tensões sociais nas grandes áreas metropolitanas do país.
Em segundo lugar, o processo de democratização em curso no Brasil desde o final da década de 70, apesar de ter enfrentado dificuldades e percalços, significou um aumento considerável da participação social e política. Multiplicaram-se as organizações da sociedade civil e sua participação na vida pública.
Em terceiro lugar, o Estado brasileiro foi se tornando crescentemente inoperante, desadaptado para as funções estratégicas que ele é chamado a desempenhar no novo padrão de desenvolvimento e no enfrentamento das novas e complexas questões sociais.
Do ponto de vista social, o momento atual no Brasil é marcado, simultaneamente, por um grande desafio e por uma excelente oportunidade.
O desafio consiste na necessidade de enfrentar de forma decisiva, constante e sistemática um conjunto complexo e diferenciado de problemas sociais antigos e novos.
Assim, por exemplo, o Estado brasileiro precisa se capacitar para cumprir melhor e mais eficientemente seu papel tradicional na área de educação e saúde básica para todos e, ao mesmo tempo, modernizar-se para enfrentar novos desafios que exigem estruturas governamentais mais flexíveis.
A oportunidade reside numa nova disposição das comunidades e suas organizações, dos sindicatos, das universidades, das igrejas e das empresas para colaborar nessa tarefa, assumindo responsabilidades crescentes -como já tem ocorrido, aliás, em diversas áreas (meio ambiente, combate à Aids, direitos humanos, movimento de mulheres e combate à fome e à pobreza, entre outros). Isso significa possibilidades cada vez maiores de uma fecunda parceria entre o governo e a sociedade civil para enfrentar as questões sociais que nos afligem.
Em virtude da gravidade da situação social brasileira, ao lado da ênfase em programas sociais básicos -e, em certo sentido, tradicionais-, cujos resultados só aparecem a médio prazo, há urgência em manter e expandir os programas de assistência social e de combate, a curto prazo, às situações agudas de pobreza e de fome.
Quanto aos programas de assistência social, o governo Fernando Henrique Cardoso vem procurando aumentar sua eficiência e eficácia, intensificando a descentralização das ações para o nível municipal e eliminando as estruturas tradicionais centralizadas onde havia dispersão, ineficiência e clientelismo.
Mas é na área de combate imediato a situações agudas de pobreza e fome que estamos procurando avançar mais, baseados na experiência bem-sucedida da Campanha da Cidadania contra a Fome e pela Vida e do Consea, criando um novo programa e intensificando o uso de novos arranjos institucionais para a implementação de políticas sociais. Trata-se da iniciativa conhecida como Programa Comunidade Solidária.
São duas as marcas características dessa iniciativa.
Em primeiro lugar, o empenho em articular a execução das diversas ações do governo federal relevantes para o combate à fome e à miséria.
Em segundo lugar, o compromisso de promover e incentivar parcerias entre os diversos níveis de governo e, sobretudo, entre o Estado e a sociedade. Por isso, o programa se organiza em torno de dois núcleos distintos que se complementam.
Criou-se uma Secretaria Executiva, vinculada à Presidência da República, e que tem como responsabilidade coordenar a execução de um conjunto de programas do governo federal -cuja dotação orçamentária o novo governo já encontrou definida para o ano fiscal de 1995- considerados relevantes para o combate à fome e à miséria.
Constituiu-se ainda um Conselho da Comunidade Solidária, composto por 32 membros, que eu tenho a honra de presidir.
São 21 pessoas da sociedade civil que se destacaram na luta contra a pobreza e que demonstraram capacidade de mobilizá-la para ações desse tipo e dez ministros de Estado em cujos ministérios se localizam os programas a que acabo de me referir.
Através da articulação desses dois núcleos, será possível, além de implementar uma política de curto prazo de combate à fome e à miséria, transformar de forma duradoura as práticas governamentais de atendimento às populações carentes.
Nestes três primeiros meses, apesar das dificuldades, já foram obtidos resultados concretos.
No que se refere à Secretaria Executiva conseguimos:
a) garantir os recursos alocados para os programas, distribuindo-os por um cronograma adequado de desembolso;
b) a inclusão de novos programas que ampliam o universo da ação da Comunidade Solidária;
c) selecionar, a partir de critérios técnicos e em colaboração com os governos estaduais, os municípios em que serão desenvolvidas as ações integradas para reduzir a mortalidade infantil, melhorar o acesso e a qualidade do ensino e proporcionar alimentação à população carente.
O desafio mais imediato da Secretaria Executiva e do conjunto dos ministérios é fazer com que essa cadeia de ações atinja os Estados e municípios.
No que se refere ao Conselho da Comunidade Solidária conseguimos:
a) identificar as redes sociais através das quais se pode conseguir a mobilização da sociedade e a sensibilização dos governos para a luta contra a miséria;
b) definir três eixos prioritários que concentrarão sua ação promotora e mobilizadora. Cabe ao conselho desenvolver propostas alternativas e inovadoras nos campos da criação de oportunidades de trabalho, capacitação profissional para jovens e promoção da saúde das crianças;
c) a colaboração ativa do Comitê de Entidades Públicas, cuja importante experiência nesses campos de trabalho virá se somar aos esforços da Comunidade Solidária;
d) o apoio técnico e financeiro de instituições internacionais. Com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, assinamos um termo de compromisso referente à doação de US$ 150 mil para viabilizar meios de diálogo entre o conselho e a sociedade.
Dada a receptividade que o programa obteve junto a estes organismos, o BID abriu uma linha de financiamento da ordem de US$ 10 milhões para pequenos projetos da sociedade civil referendados pelo conselho.
A tarefa imediata do conselho é ativar as redes de participação já existentes, cuja importância reconhecemos como fundamental para enfrentar a miséria promovendo a cidadania.
Não será fácil. Mas os caminhos estão abertos e mostram que não é ilusória a esperança de um país mais justo.

RUTH C. L. CARDOSO, 64, antropóloga, é presidente do Conselho da Comunidade Solidária e primeira-dama do Brasil. É pesquisadora licenciada do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi coordenadora de pós-graduação na área de ciência política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1975-78).

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