São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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terra preta

SÉRGIO DÁVILA

anos da morte de Zumbi. Entre os 60 habitantes, pretos na maioria, está uma filha de escravos de 112 anos (leia texto na página ao lado). Eles são liderados pela "prefeita Maria Aparecida Rosa de Almeida Caetano, 50, a dona Cida. Vivem na miséria e brigam pelas terras. Mas querem conforto. E perpetuar suas raízes.
Pelos buracos da parede Até 1977, apesar de ficar a menos de meia hora do comércio local, Cafundó estava fechada para o mundo. "A gente via um carro passar e corria para o barracão, conta dona Cida, a líder informal. "Era tudo de barro, então a gente olhava o homem branco pelos buracos da parede.
Esta "ilha negra é um bairro rural de Salto de Pirapora, cidade do oeste paulista sob área de influência de Sorocaba. Sua origem está na herança que um casal de escravos recebeu em 1888, ano da morte de seu senhor e da Abolição da Escravidão.
Joaquim Manoel de Oliveira Congo (nome de seu dono mais o país de origem) e sua mulher, Ricarda, são os antepassados comuns dos Almeida Caetano e dos Pires, que vivem hoje em Cafundó. As duas famílias não se dão.
A herança original dos dois escravos foi 90 hectares (90 mil metros quadrados). Oficialmente, os cafundoenses contariam hoje com metade disso, depois que o lugar foi tombado pelo Condephaat, em 1990. De verdade, os cerca de 20 barracões e casebres de tijolo e teto de amianto se espalham por oito hectares.
É difícil chegar. Uma pequena placa na beira de uma rodovia indica a estrada de terra a seguir. Três bifurcações e seis quilômetros depois, numa estrada que acaba no centro de um vale de eucaliptos, está uma porteira e a placa, escrita na língua local: "Cafundó, túri vimbundo (Cafundó, terra de homens pretos).
"Assim não acaba nunca Os negros que vivem em Cafundó mantêm poucos traços de seus antepassados. Talvez o formato dos barracões, algumas roupas de festividades, certos pratos e tradições, tudo meio descaracterizado pela miséria.
O principal, porém, é uma língua exclusiva, rica, "inventada e falada apenas lá. A "cupópia, incrivelmente prolixa e poética. "É a única coisa que a gente tem, diz dona Cida.
Todos sabem o português e a "cupópia. Na presença de estranhos, os cafundoenses preferem a segunda. "A gente fala na frente dos brancos quando não quer que eles entendam, revela ela. "E ensina as crianças, assim não acaba nunca.
A "descoberta da cupópia pela comunidade acadêmica, em 1978, acelerou o fim do processo de isolamento de Cafundó. "Toda hora vem gente de escola, os doutores, fazer entrevista, diz dona Cida. "Mas ajuda, que é bom, não apareceu ainda.
Há muitos problemas no lugar apelidado em Salto de Pirapora de "o bairro dos pretos.
Como principais, dona Cida aponta a falta de escola e de posto médico e a inexistência de esgoto e telefone. A eletricidade chegou em 1985 (trazendo consigo alguns rádios e televisões). A água encanada, há cinco meses.
"Já teve um colégio aqui perto, a gente mandava as crianças, lembra a mulher. "Veio até pessoal do Mobral dar aula para os velhos. Depois acabou tudo. Segundo dona Cida, "`eles' fazem de propósito, pra gente se animar e depois ficar triste.
Logo que a imprensa local, atraída pelos estudiosos, começou a falar de Cafundó, não faltou auxílio. O Movimento Negro Unificado chegou a criar o Projeto Cafundó, em 1979, que fornecia assessoria jurídica, recursos materiais e alimentos.
Entidades beneficentes de Sorocaba doaram material de construção, para acabar com as antigas casas de sapé. A prefeitura de Salto distribuiu sementes, para incrementar a plantação, de arroz, feijão, mandioca e milho. Um pomar foi criado.
Hoje, passada a novidade, sobrou pouco. A terra, maltratada, já não garante o consumo interno. Um galinheiro raquítico subsiste. "Acabou a fartura, diz dona Cida.
Os habitantes sobrevivem como bóias-frias, vigias, empregadas domésticas. "Eles vão, ganham o dinheiro e voltam para cá, resume.

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