São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 1995
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'Neo-realismo mostrava uma Itália falsa'

DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA

O cineasta Mario Monicelli acusa o neo-realismo, movimento realista do cinema italiano no pós-guerra, de mostrar uma Itália inexistente, lúgubre e triste.
Ele diz ainda que foi marginalizado pela cultura de esquerda italiana, por se recusar a fazer filmes ``sérios".
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Folha - A Itália dos seus filmes dos anos 40 e 50 era menos séria, triste e miserável que a Itália dos filmes neo-realistas. Qual era a Itália verdadeira?
Monicelli - O país naquele período era muito vivaz, muito alegre, muito voluntarioso. Nos tínhamos liberado da ditadura. A guerra tinha acabado, mal para nós, mas tinha acabado. Era preciso reconstruir tudo. Todos estavam muito alegres, muito contentes, cheios de esperança, de otimismo.
Assim era a Itália que representei. Não aquela cinzenta do neo-realismo socialista, a coisa mais falsa que se podia fazer. Por isso, fui marginalizado da cultura italiana, da cultura comunista-socialista. Esse comportamento humorístico não era considerado sério. Eu, Pietro Germi e Dino Risi éramos considerados de série B.
Folha - O sr. se diz de esquerda, mas foi relegado pela própria esquerda. Acha que acabou ficando numa terra de ninguém?
Monicelli - Talvez, justamente porque eu fazia os filmes ao meu modo. Eram sobre o proletariado, mas eram cômicos, divertidos. Eu tratava o operário de modo mais verdadeiro, mais autêntico. Não daquele modo oprimido. Assim, eu não era visto como alguém de direita, mas como alguém que não se empenhava em defender a revolução, segundo os dogmas socialistas. A esquerda não suportava o fato de tratar o operário de modo divertido e até ridículo.
Folha - Quais são as vantagens e desvantagens de se trabalhar aos 80 anos?
Monicelli - As vantagens são comuns a outras profissões. Trabalha-se melhor, mais facilmente. Muitos problemas que se apresentam na realização de um filme já são velhos conhecidos. Fica mais fácil resolvê-los e se trabalha com mais agilidade e simplicidade.
As desvantagens, ``ma"... não existem. Acho que só há vantagens. O trabalho de filmagem, que é fisicamente mais exigente, sempre foi um repouso para mim. O cansaço maior é precedente, é escrever o roteiro, escolher os atores, os cenários, fazer os testes. Esse trabalho é cansativo. Se se erra essa preparação, tudo se torna depois dificílimo. Depois que tudo está pronto, a filmagem é muito simples, um repouso. Chego até a engordar.
Folha - Que mudanças a idade trouxe aos seus filmes?
Monicelli - Acho que meus filmes hoje continuam duros, amargos. Procuro as contradições nas pessoas, nas famílias. Não mudei muito minha visão do mundo e da realidade. Tornei-me um pouco mais maduro, mais ranzinza, mas também mais indulgente.
Folha - O sr. pensa em se aposentar, em largar o cinema?
Monicelli - Acho que os outros vão me aposentar. Não deixarei de fazer o cinematógrafo. Eu gosto, me interessa representar a realidade. Não estou desiludido, aborrecido, nem cansado da vida.
Folha - O sr. continua a trabalhar por medo da morte?
Monicelli - Não sei dizer. Eu não tenho medo da morte. Nunca penso nisso. Acho que será uma aventura a mais. Não sou ateu e acho que haverá alguma coisa depois da morte, mas é um mistério. Então, vamos ver o que é. Será uma nova aventura.
Não tenho medo da punição, pois não creio nesse tipo de catolicismo. Não que me considere alguém perfeito, que nunca cometeu pecados. Tenho remorsos. Mas o que vier, virá. Se for punido, tudo bem, não será para sempre.
Folha - Que conselhos o sr. daria para um jovem cineasta?
Monicelli - Por que quer ser cineasta? Tem alguma coisa a dizer? E, se tem, porque através do cinematógrafo, e não da literatura, do teatro, da pintura? Um jovem deve se perguntar essas coisas. Quando tiver certeza de que esse é o modo de expressão que o satisfaz mais, então diria que deve ser honesto e coerente com si mesmo. Não deve se preocupar em ser originalíssimo. Quando se é jovem não se pode conhecer tudo. Deve seguir a orientação de um diretor ou dois, aqueles a quem ele ama mais, que lhe são mais próximos, e regular-se por eles, não mudar constantemente de rumo.
Folha - De qual de seus filmes o sr. gosta mais?
Monicelli - É difícil escolher. Talvez ``O Incrível Exército Brancaleone" (1966). Foi agradável de filmar, é fantasioso, alegre, fora das regras, sem precendentes.
Folha - De qual gosta menos?
Monicelli - ``O Quinteto Irreverente", que é uma continuação de ``Meus Caros Amigos". Teve sucesso, mas não me deu satisfação.
Folha - O sr. se arrepende de ter feito algum filme?
Monicelli - Não. Vendo hoje, há uns dois que gostaria de refazer. Mas os filmes que não ficaram bons têm uma vantagem: ninguém quer vê-los. Não é como uma obra de arquitetura ruim, que permanece exposta para sempre. Filmes e livros ruins desaparecem.
Folha - Num país que produziu tantos grandes cineastas, o sr. se consideraria titular na seleção italiana do diretores?
Monicelli - ``Ma"... se forem só os 11 titulares, fica difícil. Se colocarmos os reservas também, aí acho que dá, fico no banco.

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