São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 1995
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Um homem de princípios

FÁBIO KONDER COMPARATO

Ainda não nos demos conta, integralmente, da radical inadaptação à realidade brasileira das categorias e dos conceitos elaborados pelo pensamento europeu, aos quais sempre nos apegamos com cega reverência.
Consideremos, por exemplo, a delicada questão da ética política que, segundo parece, vai deixando aos poucos de interessar a opinião pública.
Em sua famosa conferência-ensaio de 1919 sobre a política como vocação -e que não passou, no fundo, de uma tentativa de justificar a aceitação do ``Diktat" de Versalhes-, Max Weber, que fora delegado da Alemanha à Conferência de Paz, sustentou que só haveria duas espécies de orientação moral na política: a ética das convicções pessoais e a ética da responsabilidade.
No primeiro caso, o que conta são os princípios segundo os quais agimos, sem que o eventual efeito nefasto das ações ou omissões possa ser imputado à nossa responsabilidade. No segundo caso, o critério decisivo é tão só o resultado almejado, pouco importando a incoerência entre o agir e as convicções de princípio do agente.
Não é preciso grande esforço de reflexão para perceber o caráter profundamente racional, senão racionalista, dessa classificação. Em ambos os padrões de comportamento ético descritos por Weber, o pressuposto é que as ações humanas são sempre guiadas pela razão, sem jamais se deixarem perturbar por interesses, sentimentos ou emoções.
Por isso mesmo, o critério distintivo é a pura coerência lógica: num caso com os princípios de comportamento, no outro com as consequências práticas da ação.
Que esse racionalismo seja totalmente estranho à mentalidade brasileira, parece inútil sublinhar. Com a fórmula célebre do ``homem cordial", Sérgio Buarque de Holanda pretendeu justamente enfatizar o predomínio absoluto, entre nós, de uma ética de fundo emotivo sobre uma orientação racional da vida.
As virtudes que temos tradicionalmente prezado, ao longo de nossa história, são as que se ligam à esfera dos sentimentos: a benevolência, a tolerância, a afabilidade. O sentido da disciplina ou o rigor lógico da decisão sempre nos pareceram algo de artificial, senão de dissimuladamente falso.
No campo político, o desenvolvimento de nossa ética cordial tem produzido, como ninguém ignora, a perpétua contradição entre os princípios -que exaltamos com sinceridade no plano da retórica- e as ações concretas que sistematicamente os desmentem, como se se tratasse de dois mundos incomunicáveis.
Daí a acomodação constante de posições programáticas inconciliáveis, ou a convicção generalizada de que a preferência por parentes e amigos, na hora da decisão, é uma norma superior de conduta, cuja violação, ainda que por razões de interesse público, revela intolerável dureza de caráter.
Seria preciso acrescentar que, hoje, tem se alastrado em nosso meio uma justificativa pseudo-racional do comportamento político (ou sindical), em que são postos em realce os resultados visados e não os princípios proclamados, sem que essa aparente adesão à ``ética de responsabilidade" de Max Weber esconda o fato óbvio de uma surda luta de interesses puramente partidários, classistas ou corporativistas.
Raros são os nossos homens públicos, cujo comportamento ético se distingue desse medíocre padrão nacional. Dentre essas exceções notáveis, merece ser assinalada a personalidade do professor Goffredo da Silva Telles Junior, que chega hoje aos 80 anos de idade.
A elegância e a afabilidade impecáveis de suas maneiras, no trato social, jamais o impediram de obedecer rigorosamente, como professor e político, aos princípios da justiça democrática -livre, igualitária e fraterna.
Numa feliz combinação de qualidades, pôde ele harmonizar a cordialidade tradicional da nossa gente com uma fidelidade zelosa e intratável em relação aos valores do patriotismo, da justiça social e da dignidade humana.
É isso que faz com que este lídimo representante do mais altivo patriciado paulista sinta-se naturalmente à vontade, ao lado de trabalhadores e líderes políticos da mais humilde extração social, na defesa das grandes causas da cidadania, nos últimos tempos.
E é isso também que lhe confere, nesta quadra venerável da vida, uma surpreendente juventude de espírito, capaz de suscitar o entusiasmo e a indignação cívicas, e de mantê-lo durante meio século, mesmo agora, dez anos passados de sua aposentadoria compulsória, como o mentor espiritual de sucessivas gerações de estudantes.
O exemplo luminoso desse professor emérito da Universidade de São Paulo precisa ser realçado mais do que nunca neste momento, em que docentes-políticos nos oferecem o triste espetáculo de tortuosos compromissos éticos e de grotescas sessões de ``politics-business".
Deus lhe pague, querido mestre!

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