São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 1995
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Melhor a emenda do que a emenda

MIGUEL REALE JÚNIOR

Toma corpo a denúncia de que a emenda constitucional aprovada, de acordo com a redação dada pelo relator, deputado Jorge Tadeu Mudalen (PMDB-SP), visa a beneficiar as atuais concessionárias de distribuição de gás, empresas pertencentes aos Estados, muitas de economia mista, ora com participação minoritária da BR Distribuidora ou da empreiteira OAS.
Não há dúvida de que se deve, ao se permitir que a exploração do gás canalizado seja realizada pela iniciativa privada mediante concessão, preservar os direitos das atuais concessionárias.
Era essa a clara intenção do deputado Nelson Jobim, na emenda aglutinativa que ofereceu ao parágrafo 2º do art. 25 da Constituição, na condição de relator da revisão constitucional.
Na proposta do relator da revisão constitucional retirava-se a restrição de ser a concessão apenas outorgada a empresa estatal, mas se preservava o direito adquirido, por via de artigo assim redigido: ``As concessões abrangidas por esta emenda são mantidas nas condições previstas nos respectivos instrumentos de outorga, inclusive quanto a prazos de duração".
Destarte, ressalvavam-se as concessões antes consagradas, ``nas condições previstas nos respectivos instrumentos de outorga."
Anote-se que o serviço de distribuição de gás é concedido, pelo atual texto constitucional, com exclusividade, e assim também propunha o relator na revisão constitucional, em sua emenda aglutinativa.
A discussão desse tema agora tomou cores eloquentes, e com rapidez assumiu o caráter de drama, sempre presente a personagem trágica da empreiteira, instante em que o emocionalismo prevalece e a análise ponderada do texto fica relegada a segundo plano.
Sem se debruçar sobre as normas e o seu significado, todos desejam, antes de tudo, expungir qualquer laivo de compromisso com interesses de empreiteira maldita.
Para reencontrar o caminho da racionalidade, antes de tudo cumpre recordar os dois textos dados ao artigo 2º, para depois confrontá-los.
O artigo 2º da emenda enviada pelo governo diz:
``Os Estados poderão assegurar às empresas concessionárias dos serviços de gás canalizado, criadas até a promulgação da presente emenda constitucional, os direitos decorrentes do sistema anterior".
O artigo 2º da emenda proposta pelo deputado Tadeu Mudalen e aprovada pelo plenário em 1º turno edita:
``As empresas concessionárias de gás canalizado criadas até a data de promulgação da presente emenda constitucional terão assegurados os direitos decorrentes dos respectivos instrumentos de outorga".
A faculdade dada aos Estados de assegurar às atuais concessionárias ``os direitos decorrentes do sistema anterior", na verdade, constituía um cheque em branco e inaceitável discricionariedade ofertada aos Estados, que poderiam, dentro do universo compreendido ``pelos direitos decorrentes do sistema anterior", conceder, por exemplo, exclusividade. Com isso, eliminar-se-ia de vez a possibilidade de concorrência e de abertura do mercado.
Inseria-se, doutra parte, no sistema anterior a exigência de ser a concessionária uma empresa estatal, e, assim sendo, de acordo com o preceituado na proposta governamental, poderia um Estado assegurar que a concessão apenas deveria ser outorgada a empresa dessa natureza.
Seria ingênuo imaginar que a possibilidade de os Estados manterem as atuais concessionárias, com os direitos próprios do sistema anterior, por ser tão só uma faculdade, não se transformaria em regra absoluta, vindo-se a deturpar a intenção da alteração constitucional, em favor das concessionárias de hoje das quais participam a BR Distribuidora e a OAS.
O texto aprovado repete a proposta do relator Nelson Jobim quando da revisão constitucional, ao assegurar, independentemente do arbítrio dos Estados e de forma menos extensa, apenas ``os direitos decorrentes dos respectivos instrumentos de outorga" e não ``os direitos decorrentes do sistema anterior".
O importante da proposta está na possibilidade da participação da iniciativa privada, o que permite que as ações das concessionárias pertencentes ao Estado sejam vendidas e de forma valorizada, na medida em que os direitos dos instrumentos de outorga estão assegurados.
A eliminação da exclusividade de distribuição como hoje ainda dita a Constituição, e que perdurava na emenda de Nelson Jobim na revisão, é o instrumento imprescindível a que se instaure a concorrência, o que poderá não ocorrer se prevalecer o texto original da emenda proposta pelo governo.
Assim sendo, só Pirandello explicaria a trajetória dessa emenda à procura de um beneficiário, que nunca é quem se imagina ser.

MIGUEL REALE JUNIOR, 51, advogado, é secretário da Administração do Estado de São Paulo, professor titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP e vice-presidente do PSDB de São Paulo. Foi secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo (governo Montoro) e assessor especial da presidência do Congresso constituinte.

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