São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 1995
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Cinema brasileiro procura e nega o passado

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se a gente começa a ver muito cinema brasileiro, tende a ficar menos sensível para seus defeitos. Além disso, já foi ver sem grandes expectativas; não é difícil, então, ter uma boa surpresa. Ou uma surpresa razoavelzinha.
Mas o crítico Tales Alvarenga tem razão quando diz, na última ``Veja", que, ``em matéria de filme nacional, a atitude mais prudente é ser crítico em relação aos críticos". Foi violento com relação ao elogiado ``Louco por Cinema", de André Luiz Oliveira.
Desconfio que, por trás disso, está em jogo a volta de um tema que andou esquecido na última década, o da famosa ``identidade nacional". Em 1985, um ministro da Cultura caiu no ridículo quando se pôs a defender a broa de milho e os coretos do interior.
Éramos mais cosmopolitas há dez anos. Tudo que cheirasse a folclore e a nacionalismo era rejeitado com mais facilidade. Vivia-se uma estética ``clean", a luz fluorescente dava charme à sala de estar, o filme ``Diva" era ``cult", vestir-se de preto era o máximo. Tudo tinha um toque de ``nouvelle cuisine".
Claro que isso não acabou por completo. Retrospectivamente, todo período tem uma coerência estética maior do que o momento presente. Aos poucos, a bruma ``cool", o jeito que tudo tinha de ser parecido com a embalagem dos cigarros Gitanes, vai desaparecendo, ou melhor, parece fixar-se numa época definida, a década de 80.
E agora? O gosto folclorizante provou, no teatro de um Romero de Andrade Lima, por exemplo, ter uma vitalidade enorme -e nada menos ridículo que seus espetáculos. Noutro extremo, a exasperação e o desbunde estão à toda com Zé Celso.
A Companhia das Letras publica ``O Povo Brasileiro", de Darcy Ribeiro, e inicia uma coleção chamada ``Retratos do Brasil", com textos de viajantes e historiadores da Colônia e do Império. Nelson Rodrigues e Oswald de Andrade são invocados na procura de um saber sobre o ``caráter" de nossa gente.
O mau gosto explícito, irônico, de ``Carlota Joaquina" se aproxima do filme de Joaquim Pedro de Andrade, ``Macunaíma", de 1969, novamente em cartaz no Banco Nacional. Neotropicalismo, será?
Se se trata disso, cumpre notar que o movimento, ou melhor, a moda corre paralela a um processo inverso na economia e na política. Quando estávamos sob um sistema econômico fechado ao exterior -Lei da Informática, restrições severas à importação de bens de consumo-, o nacionalismo estava em baixa na cultura. A globalização dos mercados, o elogio de nossa integração subordinada aos centros internacionais vão de par com discussões sobre a ``identidade" nacional.
Mas, se o eterno ``ser ou não ser" brasileiro volta à moda, não se trata de uma estratégia de resistência ideológica ao processo de internacionalização econômica. As coisas, como sempre, são mais ambíguas.
A ``baianidade" de ACM é tão exaltada quanto a modernidade cosmpolita; não estão em contradição. E nossos ``neotropicalismos" se combinam com um cenário internacional de volta aos anos 70. Moda neo-hippie, sapatos plataforma, combinações bizarras de cores, ``etnicidades" na música e nas roupas dão o tom da cultura internacional.
A rigor, sempre foi assim. A ``redescoberta" do Brasil pelos modernistas de 22 integrava-se à linguagem e às preocupações das vanguardas européias. Não há mal nenhum nisso, claro, e seria ilusório apostar numa pureza radical nessas questões.
O problema, acho, é o caráter pendular desses movimentos. As modas vêm e passam sem que tenha havido maior avanço na discussão e nas consequências práticas que dela se poderiam tirar. A tendência é ler, por exemplo, Gilberto Freyre com mais simpatia do que antes. Voltamos a ``Macunaíma" e a Oswald; qualquer dia desses alguém se lembra de Paulo Prado ou Vianna Moog, procurando de novo a chave para entender o que somos. E não se vai encontrar mais do que já se havia encontrado antes.
Ou seja, uma mistura inextricável de ufanismo e desalento, de exaltação e sarcasmo, de empiria e ideologia, de progressismo e conservação. Uma vez que o processo de afirmação econômica do país e de fortalecimento da cidadania é notoriamente incompleto, nossa identidade cultural continua como uma virtualidade, como um enigma, como alguma coisa que temos e que não temos, e que analisamos tanto ``de dentro" (porque somos brasileiros) como ``de fora" (porque brasileiro mesmo é o povão, e não eu).
Um pouco desta atitude está em jogo quando vamos assistir a um filme nacional. Há o interesse em descobrir o que ``nós" somos -mas esse ``nós" é quase sempre ``eles", os ``outros". E em geral o diretor do filme participa desta mesma atitude: seja mostrando os ridículos da populacho, seja mostrando as baixarias da classe alta, é sempre ``deles" que trata. E o mau gosto ou a precariedade das realizações se integra numa ``brasilidade" que caçoa de si mesma.
Acontece que há caçoadas boas e ruins, filmes engraçados ou não, feitos com maior ou menor capricho e, sobretudo, com maior ou menor perfeição realista na caricatura.
``Louco por Cinema" é uma caricatura bem mais rudimentar e menos engraçada do que ``Sábado". Mas tem um aspecto interessante. Conta a história de um interno num hospício que quer completar um filme interrompido há 20 anos. Consegue reunir a antiga equipe de filmagem.
Aqueles remanescentes da geração das drogas, do sexo livre e do ``flower power" se reencontram, começam a lembrar do filme; assistem a um trecho dele, que davam por perdido. Com isso, o protagonista se livra de seus fantasmas, vence o delírio de um passado ainda por enterrar.
Misturam-se desse modo, no filme, a alegria de reviver, ou relembrar, utopias já fora de moda -as dos anos 70- e o impulso para esquecê-las, para romper com uma nostalgia paralisante. Se não é forçar a interpretação, ``Louco por Cinema" representa bem esse clima de ``revival", essas retomadas e oscilações, esse misto de procura e negação do passado, que, sem dúvida, e uma vez mais, estamos vivendo agora.

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