São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Razão técnica, razão política

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

As notícias veiculadas pela imprensa dão conta de quão complicado é o processo de encaminhamento das reformas constitucionais em curso. O jogo dos apoios necessários vai desde as motivações objetivas até as mais subjetivas e pessoais. Não menos complicado é o diálogo com os destinatários diretos, como é o caso da reforma previdenciária ou da distribuição da receita entre Estado e municípios. Isso sem falar das oposições extra-parlamentares, geradas por greves políticas e por manifestações corporativistas.
O governo, nesse jogo, tem praticado ora estratégias de recuo, como no caso da Previdência, ora de posições firmes, como nas greves. Uma estratégia é, num cálculo de meios e objetivos, um ato típico de racionalidade política. Quem recua ou resiste avalia os meios na medida em que não desiste dos resultados.
E os resultados, na convicção governamental, deveriam se impor à mais modesta razão por força dos fatos que afligem a realidade brasileira. Como se percebe, porém, que a razão técnica não tem o dom de comover, por si só, a razão política, surgem os atos estratégicos.
Essa briga entre as razões tem por núcleo os limites de possibilidade e desejabilidade do Estado provedor, isto é, aquele Estado que, por definição, deveria assumir o bem-estar social de uma forma direta, assegurando ao cidadão assistência à saúde e previdência nos casos de velhice, doença, morte etc.
Esta função -provedora- do Estado vem ao encontro de uma sociedade complexa, que define seus padrões de vida pela qualidade da existência avaliada de acordo com serviços e confortos -saúde, previdência, educação, lazer- considerados desejáveis e, enquanto desejáveis, possíveis para todos.
Esses padrões tornam-se, assim, exigências que, aliadas à incapacidade do mercado de atendê-las todas, simultaneamente, e em toda a sua extensão, multiplicam as tarefas do Estado, onde, pressupostamente, elas têm de ser atendidas.
De um modo geral, e no Brasil em particular, as pressões desta sociedade em ebulição têm sido enfrentadas por dois meios. Numa primeira alternativa, o Estado incha. Daí decorrem, porém, conhecidos problemas. Por exemplo, a multiplicação das funções oficiais cria a necessidade de novas fontes de renda. A expansão concomitante da burocracia estatal aumenta os custos.
Os orçamentos do Estado, porém, diferentemente da iniciativa privada, estão sujeitos a pressões políticas. Em consequência, por exemplo, para aumentar as receitas públicas, acelera-se o desenvolvimento econômico, mas os proventos daí resultantes devem ir para os programas sociais. Só que essa aceleração gera inflação.
Tenta-se, então, aumentar a produtividade em setores oficiais e de serviços, cujos resultados ficam muito aquém de outros setores industriais. Então a saída é aumentar impostos, com todos os clamores daí decorrentes.
Uma outra alternativa é, pois, desinchar, contendo despesas, reduzindo os programas sociais. Mas aí acontece a grita desencontrada: as elites empresariais apóiam, mas protestam contra a estancada no desenvolvimento; o corporativismo rebela-se, jogando a culpa pelos problemas na má administração governamental, os trabalhadores não suportam a expectativa da insegurança etc. E, diante de tudo, o espetáculo dantesco da miséria cria uma angústia interminável.
Essas alternativas apontam, pois, para um dilema. De um lado, a experiência tem demonstrado, tecnicamente, que o Estado provedor é ambivalente, posto que, ao criar uma demanda adicional por meio dos gastos públicos e do incremento das obras necessárias ao exercício de suas funções, ele se vê obrigado a mediar entre as exigências técnicas e as posições e interesses por elas atingidos.
A arbitragem entre o ativismo e a cooperação concreta, porém, é extremamente difícil de ser conduzida: mesmo diante da demonstração das exigências técnicas até para melhorar o atendimento das conquistas sociais, é quase inevitável que os grupos políticos acabem por vetar interesses recíprocos, com a consequente sensação geral de frustração e impotência acarretada pelos impasses.
Por outro lado, tem-se observado que a distribuição (leia-se, o atendimento dos objetivos sociais) não é separável da produção nem se pode subtrair às leis que governam o mercado, ou seja, a exigência de a produção reintegrar o capital e valorá-lo põe um limite à distribuição, de tal modo que as margens de disponibilidade do produto social para intervenções redistributivas são estreitamente dependentes da conjuntura, o que acaba afetando diretamente o Estado provedor como prestador de serviços sociais.
Ora, é nesse quadro que ocorre este jogo, para muitos exasperante, das razões técnicas e das razões políticas. Trata-se de um jogo inerente à democracia, que, obviamente, não pode ser responsabilizada pelos fracassos.
Nesse jogo, o pior conselheiro é aquele que pensa ser possível transformar as razões técnicas em razões políticas. Nisso está uma das raízes das tentações autoritárias. Mas não é melhor conselheiro aquele que faz o inverso, isto é, que toma as razões políticas por razões técnicas e envereda por utopias tão aliciantes quanto perigosas.
Faz bem, pois, o governo, no espaço entre os acertos possíveis e os erros inevitáveis, em buscar o encontro, o diálogo, o apoio e oposição abertos. O que não se lhe deve pedir, porém, é que desconheça suas próprias limitações e se atire ao imponderável das rupturas.

Texto Anterior: ENTÃO TÁ; COISA DE BORBOLETA; TIETAGEM; BOM DE LEITURA
Próximo Texto: Liberdade de imprensa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.