São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 1995
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De âncoras e de bóias

ANTONIO DELFIM NETTO

O Brasil é um país que merece ser vivido. Ele passa, em semanas, do mais cruel pessimismo de um Sófocles (``A melhor coisa é não ter nascido. Mas tendo visto a luz, a melhor coisa é voltar o mais depressa possível para a origem", em Édipo Rei) para o ridículo otimismo satirizado por Voltaire no Candide, que na juventude levara a sério o ``filósofo" Pangloss (``tudo está perfeito neste mundo que é o melhor possível").
Mas afinal, o que aconteceu? Houve uma mudança nas condições objetivas que misteriosamente transformou os problemas em suas próprias soluções? Quais eram (e são) as objeções fundamentais ao processo de estabilização? Primeira: o risco de financiar um déficit em conta corrente com capitais cada vez mais voláteis e com entrada induzida pela restrição interna de crédito. Segunda: a utilização insensata da taxa de juro que destrói o precário equilíbrio fiscal e prejudica os outros dispêndios do governo. Terceira: o risco de amargar uma resposta desagradável do setor agrícola à expropriação produzida na safra 1994/95.
Ora, é preciso ter sido educado pelo discípulo de Leibniz no castelo de Thuder-ten-tronckh para acreditar, seriamente, que uma política cambial sustentada: 1) por uma política de restrição da taxa de crescimento (necessária, mas que vai agravar ainda mais o problema fiscal); 2) por uma fantástica taxa de juro real (``que vai durar ainda dois anos", como disse uma autoridade) e 3) por truques que produzem subsídio por conta da receita dos Estados e municípios, seja, de fato, uma ``âncora que vai durar muito e muito tempo...". O máximo que ela pode ser é uma ``bóia"!
É concebível pensar em ``âncora" cambial com uma inflação interna de 30% e externa de 3% ao ano? É claro que, se supusermos que a inflação interna será de 3% nos próximos 12 meses, tudo estará bem, no melhor dos mundos. Mas o próprio Pangloss teria dúvidas sobre essa proposição...
O resultado do Plano Real é realmente bom. Como sempre temos dito, uma inflação de 30% ao ano é marca de sucesso no 1º ano do programa. Mas não é disso que se trata. O de que se trata é exatamente da sua continuidade sem sobressaltos e sem retrocessos (alguns já visíveis) no caminho de abertura econômica e do desenvolvimento, o que é impossível sem um vigoroso aumento das exportações.
É possível ignorar que a política de juro cada vez maior para atrair capital cada vez de menor prazo aumenta a volatilidade das reservas? É possível ignorar que ela está destruindo o setor produtivo e levando à ruína as finanças públicas da União, dos Estados e dos municípios? É possível ignorar que manter essa política torna impossível a redução do ``custo Brasil", porque gasta em juro o que se deveria ser investido no equipamento público? É possível ignorar que o governo -para manter essa falsa âncora- prefere pagar juro em lugar de melhorar a saúde das crianças brasileiras?
É preciso insistir nos imensos riscos de financiar déficits em conta corrente com capital especulativo de prazo cada vez menor. Ou esperamos financiá-los com a venda das estatais? Será que não aprendemos nada com a tragédia mexicana?

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