São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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O Estado do abuso

ROBERTO CAMPOS

``Libertas et speciosa nomina praetexuntur; nec quisdam alienum servitium et dominationem sibi concupivit, ut non eadem ista vocabula usurparet." (A liberdade e outros nomes pomposos são usados como pretexto; e não há quem queira dominar e explorar de outros que não as usurpe.)
(Tácito)

Diante do espetáculo das greves ilegais coordenadas, de sindicatos monopolistas de serviços públicos monopolizados, permanecer ``cool" pode ser uma tática politicamente válida a curto prazo. Dá tempo para a maré baixar. Esses movimentos grevistas, sempre organizados por dirigentes sindicais empenhados sobretudo em jogadas pessoais de prestígio ou poder, via de regra acabam se esgotando por si mesmos. No longo prazo, tem-se provado mais saudável o tratamento de choque, usado pelo presidente Reagan ao demitir controladores de vôo, ou por mrs. Thatcher ao derrotar uma greve de mineiros de carvão que se estendeu por nove meses.
Muitos políticos brasileiros, por velhos hábitos ainda impermeáveis à modernidade ou isolados na ilha da fantasia de Brasília, não conseguem assimilar direito o papel das expectativas da economia e como elas influenciam as decisões dos agentes econômicos. E entre as situações que mais costumam toldar as expectativas econômicas estão a falta de segurança da ordem jurídica e a tolerância diante de grupos poderosos que se colocam acima da lei, quando não a afrontam pela violência, como nestas greves de empregados do setor público e de empresas monopolistas.
A tolerância nunca foi uma virtude das esquerdas, que hoje a pregam em favor de grevistas que desafiam o governo, o Judiciário e desrespeitam o consumidor. Para os marxistas, a tolerância em relação à democracia burguesa chama-se intolerância. Quem tolerava o inimigo de classe era considerado herege. Trotsky, quando no Exército Vermelho, na Revolução, andava com um milhar de sentenças de morte em branco, assinadas por Lênin. Uma espécie de cheque pré-datado...
Não é essa, evidentemente, a noção de tolerância que deva ser praticada por um regime democrático representativo. E o povo brasileiro aspira a chegar lá, embora de democracia e de representatividade nos falte ainda muito. O que foi muito agravado pelo frenesi da democratice de 88, que deixou o Estado brasileiro aleijado e empurrou o país ladeira abaixo para a ingovernabilidade. A Constituição de 88 inventou problemas econômicos literalmente insolúveis. Não nos resta senão emendar os piores pontos do seu texto, solução que, infelizmente, só se dará ao preço de sacrifícios que não teriam razão de ser num país medianamente decente e que recaem pesadamente sobre as camadas mais pobres da sociedade.
Nem todos os que precipitadamente se deixaram levar pelos equívocos de 88 estavam mal-intencionados. Muitos estavam apenas curtindo seu pifãozinho ideológico pós-estudantil, impressionados com as posições de uma subintelectualidade que havia parado no tempo desde as badernas da garotada na primavera de 68 em Paris. Intelectual subdesenvolvido é fogo... Uma parte do ``é proibido proibir" se compreende: o regime militar deixara o país em suspenso, sob o ponto de vista político. Mas, em 88, essa desculpa não justificava mais a ignorância do que estava acontecendo no resto do mundo, fazendo ruir no ano seguinte o socialismo real. Nem justificaria confundir democracia com falta de ordem e de normas e com a incapacidade de distinguir entre delinquente juvenil e congregado mariano.
Na matéria trabalhista, a Constituição, pessimamente redigida, é contraditória: assegura irrestrita liberdade sindical, mas estabelece em seguida o sindicato único por categoria e município! E, embora o texto constitucional reze que ninguém é obrigado a sindicalizar-se, continuamos a ter contribuições sindicais obrigatórias. Por fim, os constituintes de 88 escancararam o direito de greve para todo o setor público, com apenas algumas pífias restrições para manter os serviços em funcionamento. Com supina obviedade, o texto diz que ``os abusos sujeitarão os responsáveis às penas da lei" -como se abusos, por definição, pudessem fazer outra coisa!...
A greve é um instrumento válido nas disputas entre empregadores e empregados privados, isto é, que mantêm entre si uma relação contratual. Ela funciona criando inconvenientes para ambas as partes: o patrão corre o risco do prejuízo e o empregado, o do desemprego. No setor público, entretanto, não há patrão. Este é o povo -o mesmo povo ao qual pertencem os empregados do Estado. Os chefes e diretores não podem legitimamente negociar coisa alguma, porque literalmente não são donos da coisa pública, seja ela um ministério, seja uma estatal. E se o próprio presidente da República o fizer, estará extrapolando do seu cargo, porque não lhe cabe criar ônus ou obrigações para os cidadãos a não ser nos estritos limites de suas atribuições constitucionais, que não a reduzem majestade do cargo ao ridículo nível de barganha sindical.
Além disso, é óbvio que empregados que gozem de estabilidade não podem fazer greve, porque nada arriscam. Sua ação torna-se, assim, apenas chantagem, isto é, um crime praticado contra o conjunto da sociedade. E mais cruelmente contra os pobres, os que mais precisam dos bens e serviços oferecidos pelo setor público, e que não têm meios de defesa. A grande crise brasileira é política. Tudo mais é derivado. Desemprego, juros malucos, pobreza desatendida -é o preço de um processo político perverso, que vinha de longe, naturalmente, mas que levou o país, em 1988, à beira da irracionalidade total.
O povo compreende, ainda quando não o saiba expressar bem, que a economia tem de funcionar com eficiência; que é preciso produzir; que os serviços públicos têm de ser bem prestados. Não precisa de economistas para lhe explicar que uma boa distribuição da renda pressupõe a maximização da eficiência. Ele sabe, porque paga o preço da lambança pública todos os dias, nas filas de escola, de transportes, de hospitais -e pode muito bem compará-lo com os privilégios das novas classes das estatais.
O modelo monopolista sindical que temos é fascista. Só que o corporativismo fascista falava, pelo menos, na harmonização dos interesses de toda a sociedade, em oposição à luta de classes, que o ex-recente líder socialista Mussolini conhecia bem. Conseguimos combinar resíduos do corporativismo fascista com o mercantilismo colonial e acabamos reduzidos à condição de súditos, não de cidadãos. Os funcionários são donos das estatais e não servos dos consumidores. Se quisermos um país realmente democrático e uma economia eficiente, temos de ser intolerantes com o Estado do abuso. O direito de greve, no setor público, deve ser condicionado à responsabilidade civil e penal dos sindicatos pelos prejuízos causados. O melhor remédio, naturalmente, é a abolição dos monopólios estatais, que transformam o instituto da greve num instrumento de chantagem.

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