São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Plano Real _ o paradoxo de curto prazo

CARLOS GERALDO LANGONI

Administrar o Real só com o combustível monetário é uma estratégia de alto risco
O Plano Real vive um momento paradoxal: as expectativas tornaram-se novamente favoráveis, alimentadas pela descompressão das crises mexicana e argentina e o surpreendente avanço das reformas constitucionais no Congresso.
Existem, entretanto, inúmeras dificuldades no curto prazo, sugerindo que a ``lua-de-mel" do Real acabou: não é mais possível conciliar queda de inflação, aceleração do crescimento e ganhos de reservas internacionais, como ocorreu nos primeiros seis meses do plano.
É especialmente preocupante a acumulação de déficits orçamentários e o fraco desempenho das exportações, que torna lenta a recuperação da balança comercial.
A julgar, porém, pela recuperação do mercado acionário, esses fatos negativos estão sendo minimizados e o que conta mesmo é a viabilidade política do programa de estabilização: é a primeira vez em muitos anos que o Congresso Nacional passa a ser fator decisivo na sustentação de expectativas favoráveis.
O raciocínio tem certa lógica: a perspectiva de derrubada dos monopólios nas áreas de telecomunicações e petróleo, combinada com as privatizações nos setores elétricos e da Vale do Rio Doce, provocará mudança radical na escala no programa de privatização, devolvendo a consistência macroeconômica ao Plano Real.
O impacto macro pode ser desmembrado em dois componentes: o ``efeito juros", associado ao cancelamento de parcela do estoque da dívida pública, e o ``efeito capital", resultado da alavancagem de investimentos diretos estrangeiros em resposta à ampliação do leque de oportunidades de investimentos.
Um exercício numérico serve para ilustrar o macroimpacto desse programa ampliado, ajudando a compreender a nova onda otimista. A venda desses ativos pode representar uma receita potencial da ordem de US$ 60 bilhões. Sua implementação será gradual, ao longo dos próximos cinco anos, a partir de 1996.
Isso significa que a dívida interna (também cerca de US$ 60 bilhões) deverá ser reduzida em cerca de 20% anualmente e, caso não haja expansão líquida adicional, será zerada ao final do quinto ano.
A redução dos gastos com juros é, entretanto, ainda maior em função da queda do nível de taxas reais, como consequência da diminuição das necessidades de financiamento do setor público. Isso significa economia anual de pelos menos US$ 6 bilhões na conta juros, abrindo o caminho para a geração de superávits fiscais sustentados.
O impacto sobre o setor externo é também altamente positivo: as megaprivatizações multiplicarão os investimentos diretos externos, permitindo o financiamento de parcela expressiva dos déficits no balanço de pagamentos, reduzindo a perigosa dependência dos capitais voláteis de curto prazo.
Na hipótese conservadora de que a metade dos recursos de privatizações seja representada por capitais estrangeiros, será possível financiar com capitais de longo prazo cerca de 60% do déficit projetado em conta corrente (2% do PIB ou cerca de US$ 10 bilhões anuais).
Isto significa que, somente por conta das privatizações, será possível elevar para cerca de US$ 6 bilhões anuais o fluxo de investimentos diretos estrangeiros.
O desafio, entretanto, é manter o Plano Real em vôo sereno até meados do ano que vem. O risco de turbulência inflacionária ou de uma derrapagem recessiva persiste pela notória inadequação entre instrumentos e objetivos.
O Plano Real, até dezembro, viveu a confortável abundância de instrumentos voltados para um único objetivo: controlar a inflação.
Havia certa margem orçamentária viabilizada pelo IPMF e pelo Fundo Social de Emergência; a política monetária foi facilitada pela remonetização; a apreciação cambial e a sistemática redução das tarifas sobre importações amplificaram, ao máximo, o efeito disciplinador da competição externa.
A partir de dezembro tudo mudou radicalmente: perdemos a âncora cambial. Tarifas estão sendo elevadas para reduzir importações. A situação fiscal deteriorou-se. Além do controle dos preços públicos que, mais cedo ou mais tarde, terá de ser flexibilizado, só restou a política monetária.
Nesse sentido, é preocupante a solidão do Banco Central: passou a ser o único responsável pela correção dos desequilíbrios externos e controle do ritmo inflacionário. O aperto monetário tem sido draconiano, com a elevação e extensão do compulsório e drástica contenção da expansão do crédito.
Existem, entretanto, limites objetivos a essa política: a solidez do sistema financeiro, abalada pela crescente desintermediação e elevação no grau de inadimplência.
Há, entretanto, uma questão de fundo mais crucial: procura-se conter a demanda agregada pela restrição do consumo privado (via juros e controle de crédito), enquanto persiste a contínua expansão de gastos públicos via déficit orçamentário.
Há ainda o efeito colateral do aperto monetário sobre o ajuste externo: a elevação dos juros domésticos atrai capitais de curto prazo, facilitando a reversão dos fluxos cambiais negativos. Isso resulta, entretanto, em tendência para apreciação da taxa de câmbio, dificultando a retomada do crescimento das exportações, única forma de sustentar saldos na balança comercial.
O ajuste nesse contexto só poderá ocorrer através de queda drástica das importações, isto é, por um processo recessivo, indesejável e inviável politicamente.
Administrar o Plano Real apenas com o combustível monetário é uma estratégia de alto risco: mais cedo ou mais tarde, desvios na trajetória inflacionária ou mesmo vácuos depressivos irão reverter as expectativas favoráveis antes que seja possível usufruir os benefícios plenos da reforma constitucional.
A única forma de minimizar esse risco é reequilibrar o ``mix" da política macroeconômica, encaminhando ainda esse semestre um projeto de reforma fiscal ao Congresso Nacional.
É essencial reverter rapidamente o quadro orçamentário, criando as condições para um superávit operacional expressivo e sustentado. O corte na demanda agregada não estaria mais centrado exclusivamente na redução do consumo privado, e sim na contenção efetiva de gastos públicos.
A queda de juros reais ocorreria antes mesmo do início das megaprivatizações, estabelecendo um círculo virtuoso de descompressão orçamentária. Haveria espaço para flexibilizar a política monetária e realizar novos ajustes cambiais sem comprometer o controle da inflação.
Enfim, o Plano Real recuperaria a sua organicidade e coerência internas, marca registrada de seus primeiros meses de existência.
Superar o paradoxo de curto prazo é, em resumo, recolocar a reforma fiscal num plano prioritário, do qual ela nunca deveria ter sido afastada. Este é o caminho seguro para chegarmos ao arco-íris do crescimento sustentado, já visível a olho nu. Seria inominável decepção deixar escapar esta oportunidade histórica, por erro estratégico.
O Congresso Nacional vem demonstrando excepcional capacidade de sancionar as mudanças já em curso no processo social brasileiro. Como, neste contexto, justificar o adiamento da reforma fiscal? É difícil encontrar resposta plausível...

Texto Anterior: Conforme antecipado; Regras revistas; Sem responsabilidade; Em liquidação; Lucro da usina; Bens próprios; Sem dividendos; Avaliação prévia; No mercado; Não vão cair
Próximo Texto: EUA estão à beira de um ataque de nervos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.