São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Brasileiro conquista os EUA 'na porrada'

MAURO TAGLIAFERRI
ENVIADO ESPECIAL À CALIFÓRNIA

Quando se entra na Gracie Jiu-jitsu Academy, em Torrance, Califórnia (EUA), depois de se passar pela recepção, avista-se, na televisão, cenas de uma caça.
Um leão persegue uma zebra até alcançá-la, derrubá-la e, sem que a vítima possa resistir, matá-la.
Um corte brusco e o vídeo já mostra uma luta entre dois homens. ``Este lutador de boxe ousou contestar a superioridade do Gracie Jiu-jitsu", diz o narrador, referindo-se a um dos contendores.
Em poucos segundos, o pugilista, como a zebra, é atirado ao solo pelo outro lutador. ``Ele não tem para onde escapar. A derrota é inevitável", continua a narração.
Dito e feito. O boxeador apanha até se declarar vencido. A cena se repete inúmeras vezes. Lutadores de judô, caratê, kickboxing ou outras artes semelhantes são sistematicamente humilhados pelo jiu-jitsu da família brasileira Gracie.
Desafios como estes, aliás, são comuns na história do clã. Desde o início dos anos 30, Hélio Gracie, hoje com 82 anos, já tentava provar que a técnica de jiu-jitsu, que desenvolveu ao observar seus irmãos lutando, é imbatível.
Hoje, são encarregados desta missão os sete homens dos nove filhos que tem.
Royce Gracie, um deles, venceu quatro dos cinco ``Ultimate Fighter" -campeonato de ``vale tudo" entre os melhores lutadores de várias artes marciais-, nos EUA, entre dezembro de 93 e abril de 95.
Sócio do irmão Rorion há mais de quatro anos na academia em Torrance, Royce ensina a técnica da família como autodefesa aos norte-americanos.
Só não venceu os cinco campeonatos porque, na terceira edição, alimentou-se cedo demais, teve uma crise de hipoglicemia entre duas lutas e se retirou do torneio.
Não terá, também, a chance de vencer a sexta versão do ``Ultimate Fighter", dia 14 de julho. Sete dias antes, casa-se com Marianne, uma ortopedista americana.
``Se participo do torneio, ela pede o divórcio", afirma Royce. O brasileiro falou à Folha na última terça-feira.

Folha - Qual o perfil dos seus alunos?
Gracie - Temos muitos policiais, artistas. O Chuck Norris (astro de filmes de porrada de Hollywood) já teve aulas com a gente.
Folha - Há mulheres também?
Gracie - Dos 300 alunos que tenho, há umas 30 ou 40 mulheres.
Folha - E o que interessa a eles é a defesa pessoal?
Gracie - É. Mas o jiu-jitsu que a gente ensina acaba dando a eles confiança em todos os ramos. Não só numa briga, mas também nos negócios, dá muito mais autoconfiança para falar com um sujeito do que se não tivesse o jiu-jitsu.
Folha - De onde vem esta confiança?
Gracie - Você sabe que pode lidar com quem está do outro lado.
Folha - Lidar em que sentido?
Gracie - Você passa a se conhecer melhor, a saber quais os seus limites. E, automaticamente, passa a saber qual o limite do adversário.
Folha - Mas como isso funciona numa situação em que as pessoas não estão brigando?
Gracie - Às vezes, o cara te intimida nas palavras. Vou te dar um exemplo. Meu irmão Rorion foi para a praia com as crianças. A praia estava vazia. Dali a pouco, chegaram uns quatro caras fortinhos e começaram a jogar bola. Um deles ficou do lado do Rorion.
Uma hora, o cara segurou a bola do lado da cabeça dele. O Rorion falou: ``Não vai acertar essa bola na cabeça da criança".
Um amigo do cara veio lá de longe e disse: ``O que você falou aí, rapaz?". Meu irmão respondeu, sentado: ``Falei para tomar cuidado com a criança".
O cara disse: ``Não se preocupa, não. A gente não vai acertar a criança, a gente vai acertar você. Quer ir lá para perto d'água espirrar um pouquinho de sangue?"
O Rorion levantou, colado no cara: ``Então vamos". O cara parou para pensar. Acabou pedindo desculpas. O Rorion não teve que tocar a mão nele. É só o jeito de falar. Eu nunca briguei na rua.
Folha - Nunca?
Gracie - Já coloquei várias pessoas numa situação limite. Aí, o cara pensa duas vezes.
Folha - Mas, seus irmãos já tiveram problemas lá no Rio...
Gracie - Alguns já.
Folha - Tem uma cena de briga em uma praia no Rio de Janeiro num vídeo de vocês...
Gracie - Essa foi o Rickson. Tinha um cara falando besteira na praia, dizendo que pegava, que fazia e acontecia. O Rickson foi lá e limpou o nome.
Folha - As pessoas fazem isso porque vocês são da família...
Gracie - Sabem que a gente é da família e têm que aguentar pau.
Folha - Virou obsessão querer derrotar vocês?
Gracie - Imagine se o Palmeiras não perdesse há 65 anos. Fazem uma seleção e o Palmeiras bate neles de goleada. Aí, todos os times do Rio montam uma seleção e tomam do time do Palmeiras. Fazem a seleção brasileira e tomam de goleada de novo. Aí, começam a buscar jogadores pelo mundo...
Folha - O que você está falando é que sua família aguenta provocação na rua há 65 anos...
Gracie - Não. Se uma mão tiver que voar, a minha vai ser a primeira. Sou o primeiro a mandar.
Folha - Sempre tem gente provocando?
Gracie - Várias vezes. Eu estava numa boate uma vez e um cara mexeu com uma amiga minha.
Fui lá falar com ele: ``Meu amigo, essa garota aqui é minha namorada. Não mexe com ela, não, por favor". O cara: ``Qual é, rapaz, o que você quer?"
Eu falei: ``Você pede desculpas para ela agora, porque eu não quero fazer uma cena. Posso te meter porrada aqui dentro ou lá fora, qual que você quer?"
Aí, ele pediu desculpas. Ele não sabe por que, só a vibração de ouvir um ``você quer tomar porrada aqui dentro ou lá fora"...
Folha - Agora, com isso você não estaria também formando um monte de ``folgadinhos"? Ou existe uma filosofia de autodefesa nessa formação?
Gracie - É como se eu te desse uma arma. Se eu te ensinar jiu-jitsu, você vai ter uma arma para usar quando precisar.
Folha - As artes marciais têm um fundo filosófico e religioso. Qual a filosofia da sua arte?
Gracie - Eu não fumo, não bebo, sigo uma alimentação à base de frutas... E a filosofia, cara... Eu converso com os alunos, toda vez que sinto que eles têm um problema, sento para conversar, dou uns conselhos, tento ajudar o cara.
Mas a filosofia... Se o cara me der um soco na cara, ele me deu uma razão para reagir. Vou botá-lo no chão, colocar a mão no pescoço dele e dizer: ``Sossega, ou eu te arrebento a cara". A filosofia é para te dar autoconfiança. Vou te dar bom senso para você ser o seu próprio juiz.
Folha - Como são os ``Ultimate Fighters"?
Gracie - A regra é: não vale dedo no olho, nem morder.
Folha - E golpes baixos?
Gracie - Vale. Segurar, apertar o saco, vale. É uma briga.
Folha - E a dor?
Gracie - Na hora, não dói. Mas, na hora de dormir, você pensa. ``O que foi que eu fiz?" Aí, dói. Mesmo se você não tomar nenhum golpe violento. Só a adrenalina que o teu corpo solta... Dói tudo.
Folha - Você já perdeu alguma luta?
Gracie - Ainda não.
Folha - Alguém pode te derrotar ou você se acha imbatível?
Gracie - Nada é impossível. Mas eu estou pagando para ver.

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