São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Pelas trilhas de Clarice

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em 1990, foi publicado o livro ``Langues de Feu" (Línguas de Fogo), da estudiosa canadense Claire Varin, sobre vida e obra da escritora brasileira Clarice Lispector (1925-1977) -autora de romances como "Perto do Coração Selvagem, "O Lustre e "A Hora da Estrela.
Trazendo revelações sobre a vida de Clarice e fotografias inéditas dela em família, era a primeira tentativa de biografar a maior escritora brasileira -mas em francês, lamentavelmente.
Poucos anos depois, li uma das mais sofisticadas análises críticas da obra de Lispector. Era uma tese de doutoramento para a Universidade da Califórnia, em Berkeley: ``Clarice Lispector's `Things': The Question of Difference" (As `Coisas' de Clarice Lispector: A Questão da Diferença), de Camillo Penna -mas em inglês, lamentavelmente.
A existência desses dois textos, a despeito de atestar a indiscutível importância de Clarice Lispector no cenário da literatura brasileira e internacional, era, por outro lado, a prova do desdém que o Brasil reserva a seus escritores.
Que importância tiveram para nosso país Olga Benário ou Assis Chateaubriand em comparação com Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano Ramos ou Clarice Lispector? A contar pelas biografias existentes, nenhuma.
Há biografia de Chateaubriand mas não há de Rosa ou Ramos . Com o recente lançamento de ``Clarice - Uma Vida Que Se Conta", de Nádia Gotlib, esse deserto vem se povoar um pouco, pelo menos no que se refere a Clarice Lispector.
O livro está longe de ser a biografia ideal (e parece que não tinha esse propósito), no estilo americano agressivo, que prima pela exaustiva pesquisa dos fatos, devassa a vida do biografado mas deixa satisfeito o leitor ávido por informação.
Biografias são defeituosas na essência, se é que se pode chamar de defeito esse olhar bisbilhoteiro. Mas servem a seu objetivo: o de ser um complemento à obra do biografado, por despertar ou ampliar o interesse por sua obra. Além de, mais importante ainda, ser preservação de sua memória.
O trabalho de Nádia Gotlib parece ter partido de outro princípio. Mais de uma vez ela diz que, em se tratando de Clarice, vida e representação se embaralham: ``Ficção e biografia fundem-se no imponderável. Uma imita a outra".
Seguindo esse raciocínio, ela optou por misturar análise da obra com informação biográfica. O critério, ainda que discutível, não perde de vista a pessoa da escritora. O problema do livro é o momento de passagem de uma coisa (a pessoa biografada) para a outra (a escritora cuja obra é objeto de estudo).
Nessas passagens é que se percebe a fragilidade do critério escolhido. Em muitos momentos, é como se a análise da obra, ao invés de servir para explicitar a biografia, fosse o recurso possível para encobrir falhas de informação pura e simples.
Exemplo disso é quando Gotlib se refere ao conteúdo de cartas de Clarice Lispector, mencionando pequenos trechos, analisando-os, mas sem publicar as cartas -o que seria a melhor maneira de o leitor se informar e julgar.
Em outros momentos, Gotlib interrompe a narração dos fatos e passa a tratar de um trecho da obra que supostamente sirva de ilustração a eles.
Para quem já conhece a obra de Clarice, esse recurso soa às vezes forçado. Para quem não conhece, terá o mérito de ser didático.
E talvez a biografia de Gotlib exagere na dose de identificação mal disfarçada entre biógrafo e biografado, o que acaba mistificando um pouco o objeto (Clarice), ao invés de apresentá-lo a nu, como se espera de uma biografia.
Gotlib se refere a um ``modo de ser Clarice" ou ``ser quase" Clarice, como se a escritora não fosse um ser humano como qualquer outro.
Seja como for, e ainda que permaneçam sem esclarecimento muitos dados sobre a vida real de Clarice Lispector, o livro de Nádia Gotlib (em bela edição da editora Ática) é louvável pela dedicação do trabalho e por raspar um pouco o lodo que encobre vida e obra dos escritores brasileiros.
Clarice Lispector ainda é injustamente tratada por muitos ora como um mistério, ora como escritora de obra instável. Entre os acadêmicos, há quem diga tratar-se de uma grande contista, mas de uma romancista medíocre.
Entre a maioria dos homens (alguns inteligentes), é estranha interrogação -eles se aborrecem, desistem de acompanhar os caminhos sinuosos da literatura lispectoriana.
``Difícil penetrar nesse universo", um deles observou. Talvez a literatura de Clarice não combine mesmo com essa impaciência masculina por rápida penetração.
É por isso que uma biografia é tão importante para ajudar a esclarecer a obra de Lispector.
Clarice, em si, não tinha maiores mistérios. O mistério está em outro lugar, conforme ela própria dizia -nesse sentido, o livro de Nádia Gotlib se mantém fiel à escritora-, está no processo de falar, de se comunicar:
``Há um mistério em falar, e não adianta negá-lo pelo fato de não podermos explicar exatamente esse mistério. É o mistério da comunicação. Assim como, pelo fato da gente não poder explicar logicamente por que se ama uma pessoa (não é exatamente pelas qualidades dela), isso não faz a pessoa negar a existência do amor: assim é a comunicação."

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