São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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O veneno lento do drama

SÉRGIO SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma dificuldade na aproximação da obra de um autor como Otto Lara Resende, que, certamente a contragosto, foi elevado em vida à categoria de personagem, cujas grandes frases e outras riquezas existenciais eram apregoadas aos quatro ventos por gente nada discreta, como Nelson Rodrigues, é justamente atravessar o véu que envolve o mito, para ler o livro que se tem em mãos, somente o livro.
E o que salta aos olhos, literalmente, ao se iniciar a leitura da novela-título deste ``A Testemunha Silenciosa", é a simplicidade, a verdadeira modéstia (disfarce de uma sofisticação?) de sua escrita, onde, sutil e matreiramente, o narrador se oculta nos bastidores para ceder lugar, mais do que à palavra, ao olhar e ouvido da criança, diante de um mundo adulto que se esfacela ao seu redor, tendo como pano de fundo, apenas de fundo, a Revolução de 30, e, no proscênio, a família, esta instituição que se carrega de tintas ainda mais fortes, ou negras, nos interiores do Brasil, como as Minas Gerais de Otto.
Mas, para o menino ver isso com clareza, é preciso ter crescido, ter subido à torre da igreja com o sineiro Sanico, seu mestre e guia, para ver a cidadezinha de Lagedo lá de cima pela primeira vez, como quem vê a si próprio. ``A cidade me tinha, como se tem uma moeda fechada na mão."
Otto faz ressurgir das trevas, através do menino-adulto-narrador, uma galeria de personagens, nunca manipulados, que vão do pai fraco, o avô cachaceiro e ressentido, uma irmã casadoira e outra ``perdida", passando por agregados, afetos e desafetos da família, até à grande-mãe, sustentáculo de tudo, não por acaso uma parteira, com seu amor seco pelo filho.
Uma galeria que poderia ser meramente típica, não infiltrasse aí o escritor, com maestria, o veneno lento do drama, tão sorrateiro que, quando estamos diante de desenlaces, como a morte da mãe, eles são tão rápidos e cortantes, que se aproximam mais dos contos do russo Isaac Babel que da grande tragédia, com seus gritos de escândalo. E mesmo quando se trata de assassinato, ele é tão casualmente natural, que a vida prossegue como antes, apesar daquela testemunha ignorada e silenciosa, guardando o seu grande segredo. ``Existir, ser sozinho consigo mesmo, estar entregue a si mesmo, livre para ser sua presa -este era o perigo que trazia dentro dele, como um verme dentro de um fruto."
O que procura o homem que escreve e reescreve sua infância, ainda que ficcionalizada? Naturalmente, os alicerces e as origens do próprio ser, se não para reconciliar-se totalmente com ele, pelo menos para caber dentro de si. Nesta novela, evidentemente com ambições muito menores, o que não é um defeito, efetua-se aquele percurso proustiano de retorno, do primeiro volume de ``Em Busca do Tempo Perdido", mas dentro de uma realidade-subjetividade muito mais dura. Em vez da ``madeleine" mergulhada no chá, o que se tem à mesa é o econômico café-com-leite brasileiro, que vai se traduzir numa também economia estrutural da novela, delimitando o que se quer trazer à tona aos seus aspectos essenciais, sem dispersão de forças, como num soco certeiro. Quando esta dispersão ocorre, é porque subtraiu-se à vigilância do ficcionista o lado mais pitoresco do cronista.
Mas a cobrança que se faz, às vezes, a Otto, não é pela obra que legou, mas por aquela que deixou de escrever. Por que um homem com uma visão tão aguda da vida e da linguagem, não a estendeu por mais e maiores livros, optando, ao invés, por ser o grande escritor menor? Coisas da sua vida, e, para entrar nelas, teríamos de entrar também no multifacetado e dividido personagem Otto, o que não é, aqui, o objetivo.
Fiquemos, então, no que ele fez. O risco maior da crônica pitoresca de costumes se encontraria em ``A Cilada", segunda novela do volume, escrita inicialmente de encomenda para um livro coletivo de ocasião, ``Os Sete Pecados Capitais", cabendo a Otto o da avareza (teria havido ironia nesta escolha?). A partir deste pretexto, não economizou o autor sua celebrada verve de frasista, em pérolas como ``Dar, dói"; ``Viver é possuir"; ``Dinheiro merece respeito"; ``Ama as coisas acima de todas as coisas", e várias outras. Frases que poderiam perfeitamente constar de um ``Manual do Tio Patinhas", mas que também traçam um painel do linguajar esperto do mineiro (que só é bobo na anedota), sem pretender a reinvenção inimitável de um Guimarães Rosa.
O fato é que o avarento Tibúrcio, que ``nasceu pobre como Jó", acabou por sair muito melhor que a encomenda ou a anedota, para tornar-se personagem de grande envergadura, desenhado do princípio ao fim, desde a indigência cruel de seu nascimento, fruto de mãe solteira, Sá Rita do Pau D'Angola, com o próprio Belzebu, conforme a boca do povo, numa inversão macabra da História Sagrada, até tornar-se o rico comerciante, proprietário e usuário, em vias de tomar a fazenda onde um dia foi tratado como cria de fundo de cozinha, não caísse antes na própria cilada.
Desta vez, o ser confunde-se com o ter, e, mais rica ainda do que uma convincente trajetória psicológica, com seus vivos contornos sociais, há uma verdadeira animização das mercadorias de Ao Barateiro de Minas: ``Sacos de mantimentos de boca aberta; cuias e cabaças, como caras sem rosto; tachos de cobre, bacias e caçarolas ordinárias, reverberando à pouca luz que pende do teto... Um sem número de objetos dóceis, de mercadorias de toda ordem, fiéis, sossegadas... As coisas inertes, mas humanas".
Se alguma avareza existiu no projeto literário de Otto Lara Resende, foi a de cavar até o fundo o veio de um escrito, pois, como pensa Tibúrcio, ``o destino do outro é estar escondido. Nas entranhas da terra ou na escuridão do sótão. No segredo da canastra, debaixo de sete chaves".
Elaborando e reelaborando seus textos por anos a fio, até a última frase, palavra, ou vírgula, Otto se inscreve na família de Murilo Rubião e Dalton Trevisan, sem chegar ao laconismo deste último, contista maior -e menor- que todos.
E se uma outra lição se pode tirar de tanto trabalho para poucos livros, ela se exemplifica através daquele personagem-escritor de Rubem Fonseca, batizado marotamente de Winner, em ``Romance Negro", ao confidenciar na hora da morte a seu assassino, também escritor: ``As palavras são nossas inimigas". Pode-se dizer que Otto Lara Resende combateu-as, estóica e heroicamente, até a hora de seu ponto final.

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