São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Cenas de um tribunal

GENTIL DE FARIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um século, a ser completado no próximo dia 25, o tribunal britânico de Old Bailey foi palco de um dos julgamentos mais célebres e ruidosos de sua história. Nele atuaram personalidades conhecidas do mundo jurídico inglês e dois irreconciliáveis inimigos: o escritor Oscar Wilde e o velho ex-boxeador marquês de Queensberry.
Tudo começou em janeiro de 1891, com o início da amizade fatal entre o escritor, então no apogeu da fama aos 36 anos, e lorde Alfred Douglas, então com 20 anos, terceiro filho desse neurótico aristocrata decadente. O relacionamento entre ambos ficou bastante falado no privilegiado círculo da alta sociedade londrina e se fortaleceu por interesses recíprocos.
Douglas já ensaiava os primeiros versos e gostava de desfrutar a companhia do brilhante escritor, pois ele também queria fazer carreira nas letras. Wilde, por seu turno, não escondia a satisfação de usufruir do convívio constante junto ao belo jovem, vindo de uma família da aristocracia escocesa.
As relações entre pai e filho eram as piores possíveis. Douglas devotava profundo desprezo ao pai e este não perdia a oportunidade de fazer cenas e provocá-lo em virtude da amizade que mantinha com "o bruto Wilde".
Um cartão, uma calúnia
O "marquês escarlate", apelido dado por Wilde, em diversas vezes ameaçou o escritor, tentando fazer com que este desistisse para sempre de andar em companhia de seu filho. As escaramuças entre ambos se ampliaram e chegaram ao ponto de Queensberry, na tarde de 18 de fevereiro de 1895, deixar na portaria do clube Albermale um cartão com sua assinatura após os seguintes dizeres: "Para Oscar Wilde posando como um sodomita". O porteiro colocou a hora e datou o recebimento no verso, colocando o cartão num envelope, que só foi entregue ao destinatário dez dias depois, quando ele veio ao clube.
Ao ler o cartão, Wilde ficou furioso e voltou ao hotel onde se hospedava com Douglas. Os dois decidiram que Wilde deveria processar Queensberry por crime de difamação.
Contratado o advogado e redigida a queixa-crime, um mandado de prisão foi expedido e Queensberry foi preso em 2 de março. Após ouvi-lo formalmente a respeito da acusação, o magistrado o liberou sob fiança.
Nesse ínterim, grande foi a movimentação das partes envolvidas no caso, que despertou enorme interesse não apenas na imprensa londrina, mas também na parisiense. Queensberry contratou os serviços do advogado Edward Carson, que a princípio recusou, pois havia sido colega de turma de Wilde no Trinity College de Dublin, mas resolveu aceitar a causa ao descobrir o escandaloso conteúdo que ela continha. Wilde, em um dos seus ditos célebres, quando soube que iria ser interrogado por um ex-colega, afirmou: "Não há dúvida de que ele vai desempenhar o papel com a acrescentada amargura de um velho amigo".
Platéia lotada
Em 3 de abril, começa o julgamento do marquês. As galerias do tribunal estão repletas. O caso prometia grandes emoções para uma platéia exclusivamente masculina, inclusive os 12 jurados. Era raro haver causas criminais envolvendo contendores célebres e de personalidades tão díspares. Wilde estava no auge da fama e tinha duas peças em cartaz, fazendo grande sucesso: "Um Marido Ideal", no teatro Haymarket, e "A Importância de Ser Prudente", no St. James. Queensberry possuía enorme fortuna e vociferava vantagens sobre seu opositor. Ambos eram suficientemente conhecidos por suas extravagâncias e mútuas refregas.
Uma hora antes do início do julgamento, todos os lugares já haviam sido tomados. Muitos tiveram que ficar em pé. Alguém lembrou "a importância de chegar cedo", fazendo ironia com a peça de Wilde e despertando ruidosa gargalhada na platéia.
Queensberry, sozinho, de longas suíças vermelhas, olhar grave, chapéu na mão, e usando o surrado casaco azul que vestia por ocasião das caçadas, foi o primeiro a chegar. Wilde entrou poucos minutos depois numa ruidosa aparição. Trajava sobrecasaca e trazia, como de costume, uma flor na lapela.
O severo interrogatório de Carson e as respostas irônicas de Wilde constituem os melhores momentos do julgamento, que durou três dias. Primeiro, ele denunciou as "imoralidades contidas nas obras de Wilde, sobretudo em "O Retrato de Dorian Gray" e nas cartas dirigidas a Douglas; em seguida, arguiu o escritor sobre as "relações imorais" mantidas com diversos jovens.
O advogado de Wilde, que nada sabia da vida pregressa de seu cliente, percebendo a difícil situação em que ele se encontrava frente à queixa-crime apresentada, propôs ao juiz aceitar o veredicto "não culpado para o marquês no tocante apenas à expressão "posando. Carson retrucou, dizendo que aceitaria a proposta se o veredicto fosse "não culpado para toda a causa. O juiz concordou e assim o júri, induzido pela fala do juiz, decidiu que o acusado havia provado sua justificativa, o que significava que o escritor perdera a ação e o marquês fora inocentado. A platéia aplaudiu em delírio. Começava a queda de Oscar Wilde.
Voz de prisão
Por volta do meio-dia de 5 de abril, Wilde deixava apreensivo o tribunal de Old Bailey, juntamente com Douglas, que o acompanhara durante todo o julgamento. Começa então uma etapa difícil em sua vida. Os outrora inimigos ocultos, que invejavam seu brilho junto à burguesia vitoriana, começam a hostilizá-lo abertamente.
Diante do previsível resultado da queixa-crime, o procurador geral solicitou, no mesmo dia, a expedição de mandado de prisão contra Wilde, a fim de não haver "falha de justiça. O juiz de Bow Street, por cautela, só assinou a ordem após as 17h, horário do último trem, que poderia ter possibilitado a fuga do acusado. Mas o escritor decidiu ficar, contrariando os argumentos dos amigos que ainda lhe restavam e a expectativa de pessoas importantes, que sentiam visível desconforto com o rumoroso caso judicial. Assim, por volta de 18h30, dois policiais vão até o hotel e lhe dão voz de prisão.
A detenção teve por fundamento legal a sentença acusatória do marquês e o disposto na emenda à Lei Criminal, cujo objetivo era dar "proteção às senhoras e às meninas, fechamento dos bordéis e outras finalidades.
O projeto aprovado na Câmara dos Lordes não fazia qualquer referência à indecência entre homens. Na Câmara dos Comuns, entretanto, um deputado apresentou uma emenda tipificando uma nova modalidade de crime: indecência praticada entre pessoas do sexo masculino em público ou privado. Um outro propôs a elevação da pena máxima para esse tipo penal de 12 para 24 meses. Ambas foram aprovadas e consubstanciadas no artigo 11 da referida lei, que entrou em vigor a partir de 1º de janeiro de 1886. Assim, dez anos antes, o sistema penal inglês já estava preparado para punir Wilde.
O malsinado artigo 11, como se percebe, destoou completamente dos objetivos da lei proposta, pois proibia a prática de "qualquer ato de indecência grave entre pessoas do sexo masculino, in public or private. A lei sempre proibiu atos indecorosos praticados em público, a proibição também na esfera privada foi uma excrescência, só corrigida muito tempo depois. Quando a lei foi levada para a sanção da rainha Vitória, alguém observou que o texto nada dizia sobre atos indecentes entre mulheres, ao que a soberana respondeu: "Nenhuma mulher faria essas coisas.
Os defensores de Wilde solicitaram a concessão de fiança, mas o juiz recusou alegando que "não havia crime pior do que aquele cometido pelo acusado. Desta forma, permaneceu detido até o dia 26 de abril, quando teve que voltar, desta vez no banco dos réus, para ser julgado.
O momento mais sensacionalista deste julgamento, que durou cinco dias, foi o interrogatório das testemunhas arroladas com ajuda dos detetives particulares contratados por Queensberry. Eram, na sua maioria, jovens, que de algum modo foram vistos na companhia de Wilde, governantas, camareiras e porteiros de hotel. Todos forneceram apenas indícios de práticas homossexuais. Ninguém havia visto efetivamente os incriminados atos de indecência grave.
É preciso que se diga que nenhum dos jovens interrogados havia sido iniciado na inversão sexual por Wilde. Todos vinham da ``low class" londrina; faziam parte de uma extensa rede de prostituição masculina e estabeleciam chocante contraste com o requintado e elegante escritor. Os biógrafos não conseguem explicar esse relacionamento entre pessoas de interesses e níveis sociais tão distintos. É o próprio Wilde que procura compreender, em "De Profundis, sua conduta: ``Cansado das alturas, deliberadamente fui ao profundo em busca de novas sensações".
No quinto dia de julgamento, o juiz propôs quatro quesitos para a deliberação dos jurados, que discutiram o caso por quase quatro horas e, ao final, entregaram o veredicto: não havia unanimidade em relação a um dos quesitos. O julgamento teve que ser adiado e o juiz não teve outra alternativa a não ser conceder a fiança, que ele fixou na elevada quantia de 5.000 libras. Wilde é posto em liberdade, mas voltará ao tribunal pela terceira vez dentro de três semanas.
Além do notório preconceito que teve que enfrentar, dois fatores contribuíram para a condenação do escritor. Seu julgamento ocorreu juntamente com Alfred Taylor, que mantinha um bordel masculino e agenciava rapazes para homossexuais, muitos dos quais ficaram conhecidos de Wilde através dos seus serviços. Obviamente, a presença de Taylor prejudicava a defesa do escritor.
Outro fator a pesar contra Wilde foi a possibilidade de seu defensor ler cartas indiscretas de lorde Rosebery, então primeiro-ministro inglês, de março de 94 a junho de 95, e tido como seu simpatizante, dirigidas ao filho mais velho do mesmo Queensberry, Drumlanrig, que havia se suicidado em circunstâncias misteriosas sete meses antes. Rosebery havia dado sinais de que poderia ajudar Wilde, mas foi aconselhado a não fazê-lo sob a alegação de que teria a reputação prejudicada e poderia perder as eleições, o que, de qualquer maneira, veio a ocorrer.
A rainha faz anos
Em 22 de maio, começa o terceiro e último julgamento de Oscar Wilde. Preside a sessão o juiz Alfred Wills, então aos 67 anos de idade. Algumas testemunhas foram novamente ouvidas e outras novas arroladas. No dia 25, coincidentemente o do 76º aniversário da rainha Vitória, termina o escandaloso processo e o corpo de jurados chega ao veredicto: os acusados são considerados culpados e o juiz profere a impiedosa sentença.
Muito se condenou o sistema penal inglês vigente naquela época. A defesa ficava bastante prejudicada, pois falava primeiro e depois vinha a acusação, que podia, dessa forma, influenciar com mais eficácia no julgamento. Também não havia tribunal de recursos, protesto por um novo júri e nem o instituto da revisão criminal.
Após a condenação, os bens de Wilde vão à penhora e ele é declarado oficialmente falido. Suas peças, em princípio, são exibidas sem o nome do autor nos cartazes, mas, logo depois, são retiradas dos palcos. Seus dois filhos, de 11 e 9 anos, têm o sobrenome do pai trocado por Holland, da família da mãe. São obrigados a mudar de escola, a fim de evitar a vergonha trazida pela execração pública. O mais velho -Cyril- morreu em 1915 em operações militares durante a Primeira Guerra Mundial, tendo uma vaga idéia de quem havia sido seu pai. O mais novo -Vyvyan- morreu em 1967 e só conheceu a real biografia do pai já na idade adulta. Em 1954, por ocasião do centenário de nascimento de Wilde, relata suas experiências no tocante livro intitulado "Son of Oscar Wilde. Atualmente, vive em Londres Merlin Holland, o neto de Oscar Wilde, que tem um filho -Lucian.
Wilde teve que cumprir toda a pena em condições miseráveis. Ficava isolado numa cela, sem possibilidade de conversar com os demais condenados, e amarrava e desatava estopa, como parte dos trabalhos forçados. Cumpriu sua pena em três prisões e na última -a de Reading- encontrou alguns momentos para escrever sua longa carta, publicada depois com o título "De Profundis. Foi posto em liberdade somente em 19 de maio de 1897, seis dias antes de completar os fatídicos dois anos de condenação. Viverá ainda três anos e meio no exílio na França. Morreu em 30 de novembro de 1900, num hotel de segunda categoria em Paris.

A volta de Douglas
O belo Douglas foi embora para a capital francesa, com o consentimento de Wilde, logo que soube que o amigo havia perdido a demanda judicial. Assim, protegia-se e ficava longe do alcance da Justiça inglesa. Por que somente Wilde fora condenado? É uma pergunta que ele mesmo tentou responder no pungente "De Profundis. Douglas nunca o visitou na prisão ou mesmo lhe mandou alguma notícia. A julgar pela leitura da carta, a amizade entre os dois estava rompida para sempre. Entretanto, não foi o que ocorreu.
Douglas tentou a reaproximação, mas sua presença é delicadamente rejeitada por Wilde. Insistiu uma segunda vez; Wilde não resistiu e, em carta de 31 de agosto de 1897, se rende mais uma vez ao fatal amigo: "Todos estão furiosos comigo por voltar para você, mas eles não nos entendem. Sinto que é somente com você que eu posso fazer alguma coisa. Refaça para mim a minha vida arruinada e então nossa amizade e amor terão um significado diferente para o mundo". Renascia, para o espanto de todos, entre os dois "o amor que não ousa dizer o seu nome".
Após a morte de Oscar Wilde, Douglas, a quem o escritor chamava devotadamente por príncipe Fleur-de-Lys, arrumou um casamento, logo terminado em divórcio. Morreu em 1945, ao 75 anos, após escrever quatro livros sobre Wilde, nos quais tentou inutilmente negar seu relacionamento amoroso com o genial amigo.

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