São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Palavras a preço de mercado

ERIC ALLIEZ; BENTO PRADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência
Merleau-Ponty

Acabando de redigir a quatro mãos uma resposta (comedida e argumentada) ao artigo de Cláudio Figueiredo intitulado ``O culto ao hermetismo", publicado no suplemento ``Idéias" do ``Jornal do Brasil" (29.04.95), resposta que retomava com título genérico aquele de um célebre artigo de Hegel -ou seja, ``Como o Senso Comum Compreende a Filosofia" (ed. Paz e Terra, em tradução de Eloísa Araújo Ribeiro, 1995)-, cogitávamos o seguinte fim:
Esperemos que, como os grandes jornais de São Paulo (um dos quais não teve receio de lançar recentemente um caderno especial de resenhas), o suplemento cultural do ``Jornal do Brasil" continue a dar conta da produção da filosofia contemporânea -evitando, apesar da proximidade da praia, qualquer glosa demasiadamente simplista sobre o esoterismo de seu ``jargão".
Ainda bem que resolvemos eliminar de nossa versão final essa nota esperançosa: com efeito, qual foi a nossa surpresa ao ver o tema relançado num nível tão primitivo e com tamanha presunção por Sérgio Augusto, o articulista da sucursal do Rio da Folha, na edição do ``Mais!" do último dia 14... Tomado da mais previsível inspiração, termina por misturar tudo: Orwell e as ``onomatopéias galiformes" criadas por um congressista de Washington para evocar o blablablá dos burocratas da capital americana (``gobbledygook" -leia-se goboudiguque, acrescenta o amigo viajante), sem esquecer um aparelho (de patente igualmente americana) de produzir ``palavras e expressões pernósticas, ao simples apertar de um botão"... Mas nosso jornalista de plantão ``(confessa) que foi em parte para comemorar o jubileu de `gobbledygook' que (colocou) os perus (sic) Deleuze & Guattari na roda".
Com essa confissão, sentimo-nos autorizados a retomar, no essencial, ante o leitor da Folha, os termos de nossa precedente intervenção.
E como nesse contexto não teríamos a impertinência de tentar explicar a passagem de ``Mil Platôs" (livro de Gilles Deleuze e Felix Guattari recém-lançado pela Editora 34), por duas vezes condenada a receber o prêmio de obra mais ``impenetrável" do ano -seria preciso começar por remeter à estranha primeira frase do capítulo incriminado: ``O professor Challenger, aquele que fez a terra berrar como uma máquina dolorífera, nas condições descritas por Conan Doyle, depois de misturar vários manuais de geologia e biologia, segundo seu humor simiesco, fez conferência..." (pág. 53)-, optaremos por esquecer o anti-hegelianismo assumido de Deleuze para citar longamente... Hegel. Pois, em nosso entender, não é tal ou qual texto que gera problema hoje, mas a filosofia enquanto tal, quando se recusa a se comprometer com todo um regime jornalístico da língua, que é uma ofensa a qualquer pensamento -e vive qualquer pensamento como uma ofensa pessoal (``uma estratégia para intimidar o leitor e deixá-lo complexado"... Segundo esse critério ``augustiniano", pode-se imaginar retrospectivamente a sorte que poderia ter sido reservada ao último livro de Gianotti!)
Confessando um certo cansaço, pois o jornalismo vive de falsas polêmicas, a filosofia não: ``...A verdadeira filosofia pode tanto menos defender-se do que há de não filosófico na visão externa e polêmica, quanto, nada tendo de positivo em comum com ela, não pode empenhar-se numa crítica da mesma..." (Hegel, ``A Essência Crítica Filosófica em Geral").
Ouçamos outro parágrafo que, na verdade, poderia dispensar qualquer comentário: ``Constitui um obstáculo ao estudo da filosofia, tão grande quanto a atitude raciocinante, a presunção -que não raciocina- das verdades feitas. Seu possuidor não acha preciso retornar sobre elas, mas as coloca no fundamento, e acredita que não só pode exprimi-las, mas também julgar e condenar por meio delas. (Vendo as coisas) por esse lado, é particularmente necessário fazer de novo do filosofar uma atividade séria. Para se ter qualquer ciência, habilidade, arte, ofício, prevalece a convicção da necessidade de um esforço complexo de aprender e de exercitar-se. De fato, se alguém tem olhos e dedos e recebe couro e instrumentos, nem por isso está em condições de fazer sapatos. Ao contrário, no que toca à filosofia, domina hoje o preconceito de que qualquer um sabe imediatamente filosofar e julgar a filosofia, pois tem para tanto padrão de medida na sua razão natural -como se não tivesse também seu pé a medida do sapato" (Prefácio da ``Fenomenologia do Espírito", na tradução brasileira de Paulo Meneses). (Vale aqui lembrar que Sérgio Augusto faz questão de dizer que suas dúvidas -quanto a uma citação truncada que faz do prof. Cláudio Ulpiano- têm ``talvez" por origem o fato de ``ser mais jornalista do que um estudioso de filosofia".) E mais: poderia aqui seguir-se qualquer trecho de Hegel; invariavelmente se reabriria ``o conflito entre a forma de uma proposição em geral e a unidade do conceito que destrói essa forma" -conflito definidor do enunciado filosófico enquanto tal.
Que nos perdoem Cláudio Figueiredo, com sua denúncia do ``culto ao hermetismo" enquanto ``produto francês de exportação", e as ``onomatopéias galiformes" de Sérgio Augusto, querendo se distanciar não sem preciosismo das lacanagens gringas. Toda grande filosofia, com suas modalidades próprias, tem a característica de desenvolver um antagonismo absoluto de forma e conteúdo contra o ideal da ortodoxia e do senso comum. Não tem muito jeito: desde a sua aurora pré-socrática, a filosofia não deixou de se constituir contra a ``dóxa", contra o regime da opinião e do senso comum -que jamais deixou de acusá-la de hermetismo. ``Pura sofística -tal é a grande objeção que o bom senso comum termina por levantar", escreve ainda Hegel (que não era bem francês, mas gringo sim). Será que ele também mereceria do bom jornalista as censuras que endereça a Deleuze por não ter ``descomplicado" a difícil filosofia? Hegel é certamente um autor difícil, mas dificilmente poderia ser rotulado de irracionalista, ocultista ou... rui-barbosista.
Porventura nossos juízes pedagogos considerariam Wittgenstein um autor de fácil leitura? É verdade que o vienense afirmava, não sem um certo humor zen, que ``tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente". Mas nem por isso o senso comum -seu culto do saber enquanto recognição dos valores estabelecidos- pode assimilar sem esforço a linguagem e o estilo filosófico de Wittgenstein. Sobretudo se ``os limites de minha linguagem significam os limites de meu próprio mundo" (``Tractatus", 5.6). Pobre mundo...
Mas não existe uma filosofia da comunicação que se propõe a argumentar de modo ``claro e distinto" sobre os grandes problemas da atualidade (éticos, políticos, científicos...) a fim de obter um consenso democraticamente fundado? Seria o caso de perguntar se se trata ainda de filosofia, ou de um metadiscurso elaborado pelas ciências sociais, fazendo seu luto do marxismo, acerca do que deveria ser a filosofia para se reconciliar a preço de mercado com a época. Imaginemos agora, como dizem Deleuze e Guattari, que não nos falta comunicação, que até a temos demais -falta-nos sim criação e resistência ao presente, criação dos novos conceitos que nos são necessários (conforme ``O Que É a Filosofia?").
Gostaríamos de defender aqui que esse caráter intempestivo define a primeira condição para o surgimento de uma nova ``Aufklãrung", de um novo esclarecimento capaz de forjar instrumentos para uma outra experiência da história e do tempo.
``Pour en finir avec le jugement..."

ERIC ALLIEZ é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e do Collège International de Philosophie (Paris). Diretor da coleção Trans (Editora 34), pela qual foi traduzido o primeiro volume de ``Mil Platôs", acabou de publicar ``A Assinatura do Mundo - O Que É a Filosofia de Deleuze e Guattari?" (Editora 34)

BENTO PRADO JR. é professor titular da Universidade Federal de São Carlos e presidente da Anpof (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia); é tradutor de ``O Que é a Filosofia?", de Gilles Deleuze e Felix Guattari (Ed. 34)

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