São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Literatura versus dissolução

ITALO MORICONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num dos últimos artigos que publicou em vida, incluído neste volume de "Escritos da Maturidade", Lucia Miguel Pereira (1903-1959) deixa aparecer sua angústia de escritora. Angústia nascida da incerteza quanto ao valor real de sua obra, angústia por não saber se ela será capaz de perdurar, pressentimento pessimista de que o labor de toda sua geração poderá ser definitivamente emudecido pelo desinteresse sobranceiro dos pósteros.
``Seremos então", escreve Lucia, ``meros nomes em catálogos, vagos nomes que os críticos do futuro enumerarão com pouco caso (...) a nossa forma de sensibilidade parecerá absurda, o que julgamos definitivo poderá estar modificado ou destruído." Em fascinante jogo de espelhos, partindo de uma alusão ao "Jornal de um Escritor", de Dostoiévski, Lucia reflete nesse artigo, sem qualquer autocomplacência, sobre o significado de sua carreira de historiadora da literatura, papel que exerceu ao lado de outros dois: o de crítica literária e o de ficcionista.
A historiadora Lucia Miguel Pereira é diferente da ensaísta crítica. Esta pode agora ter sua medida avaliada pelo leitor atual, seja através de "Escritos da Maturidade, seja através de "A Leitora e Seus Personagens", volume publicado em 1992, também organizado por Luciana Viegas. São ambos importantes reuniões de textos antes dispersos em jornais e revistas.
Quanto aos livros publicados em vida pela historiadora Lucia, nunca chegaram a sumir das prateleiras dos interessados em literatura brasileira, embora obras como "Machado de Assis" (1936) e "Prosa de Ficção" (1950) pertençam à pré-história da pesquisa literária universitária em nosso país. No entanto, "Machado de Assis" representou uma investigação biográfica pioneira, que marcou época e jogou para patamar qualitativamente superior a erudição machadiana no Brasil. E "Prosa de Ficção" ainda hoje não deixa de ter validade como fonte de referência para a história da literatura brasileira entre 1870 e 1920.
A ensaísta crítica é diferente da historiadora, porque pode dar-se ao luxo de abordar apenas obras e autores de primeiro plano, ou pinçar aqueles que mais lhe interessem para avançar valores e critérios estéticos. Mas a historiadora não tem escapatória. Por dever de ofício, é obrigada a fazer levantamentos não restritos apenas às grandes figuras. Deve penetrar surdamente nos subterrâneos e mausoléus das bibliotecas e arquivos, percorrer revistas antigas e livros caducos, obras menores e autores obscuros. E, assim, não apenas testemunhar, mas protagonizar ``a última luta do espírito contra a dissolução", como se pode ler no artigo referido. Pois só mesmo a ``simpática disposição à leitura" do pesquisador pode resgatar da queda definitiva no silêncio o sussurro inicialmente quase inaudível da vida literária passada.
Segundo Lucia, o leitor-pesquisador abandona o descaso para com autores anônimos do passado à medida que vai percebendo nos trabalhos deles as marcas de seu esforço criador original, a vontade que um dia tiveram de dizer alguma coisa. Se a pesquisa histórica patenteia a essência trágica de toda atividade intelectual, esforço quase sempre fadado ao fracasso e ao esquecimento, também permite recompor a integridade de um compromisso existencial.
Este é o critério que orienta a maior parte dos artigos reunidos em "Escritos da Maturidade", critério que unifica a Lucia ensaísta crítica -com sua exigência de hierarquias literárias- e a historiadora -com seu gesto de acolhimento do menor e do medíocre. O tipo de leitura operado por Lucia Miguel Pereira, aclimatando em retalhos (ou seja, de maneira não totalizante) uma hermenêutica de cunho croceano, transita sem parar entre a análise estética e a indagação sobre a personalidade, seja do escritor, do leitor ou da nação.
Autora inatual? Como ela própria diz, o que mais nos separa dos autores do passado é a expressão, ou seja, o fato de dizermos muitas vezes a mesma coisa, mas de maneira diversa, criando uma ``barreira resistente, que já ninguém consegue transpor". O problema, porém, está em acreditar que exista essa ``mesma coisa", pois o fato é que outra expressão corresponde a outra coisa também.
Entre nosso tempo e o de Lucia, mudou muito a relação entre o leitor culto e a literatura. Somos filhos da universidade, da taylorização do pensamento e da prioridade do interesse teórico (ou ideológico) na determinação do gosto. Nesse sentido, o inegável charme de "Escritos da Maturidade será tingido de certo anacronismo, entre o sarau e a aplicação erudita. Seja como for, o que há de mais atual no ensaísmo jornalístico de Lucia Miguel Pereira são os exemplos de competência profissional e de abertura para o novo, que pareciam estar se aguçando ainda mais no final de sua vida.

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