São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Ciência a favor da guerra

SILVIA BITTENCOURT
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERLIM

``Eu servi só à técnica", disse em 1969 Albert Speer, ex-ministro para Armamento e Munição da Alemanha nazista, tentando justificar o seu trabalho durante o Terceiro Reich.
A frase dá a tônica das desculpas usadas, depois da capitulação da Alemanha, há 50 anos, por muitos outros técnicos e cientistas que colaboraram com a ditadura nazista e, inocentados, foram depois recrutados pelos países aliados, os vencedores da Guerra.
A declaração de Speer virou título de uma exposição recém-inaugurada em Berlim, que desmascara o trabalho realizado por esses profissionais durante o nazismo.
O evento traz a carreira de sete cientistas ou técnicos, cujos trabalhos e descobertas colaboraram, direta ou indiretamente, com a política de extermínio executada pelos nazistas ou para o prolongamento da guerra.
``Não basta pôr a culpa só nos nazistas", disse à imprensa o coordenador da exposição, Alfred Gottwaldt, na abertura do evento, no Museu de transportes e Técnica de Berlim.
Afinal, diz ele, muitos profissionais alemães tiveram sua quota de responsabilidade, mesmo fora do governo.
A guerra levou, tanto do lado da Alemanha como dos países aliados, ao fomento da indústria armamentista.
Na Alemanha, muitos cientistas e técnicos se colocaram à disposição do governo nazista e, como os próprios soldados, também eram chamados de ``combatentes para a vitória final".
Depois da guerra, porém, eles alegaram ter trabalhado em nome do progresso tecnológico e desconhecer o destino das invenções.
Como já indica o nome do museu responsável pela exposição, o evento se concentra nos temas técnica e transportes.
No entanto, mais do que a técnica ou as descobertas em si, ele enfatiza a questão moral que envolve a relação entre técnica, poder e guerra.
A exposição mostra, por exemplo, que muitos técnicos recrutavam para o trabalho prisioneiros de campos de concentração, a única mão-de-obra disponível durante a guerra.
As pessoas apresentadas foram escolhidas aleatoriamente entre muitos cientistas e técnicos da Alemanha nacional-socialista, cujas carreiras foram ainda pouco estudadas.
Aberto até outubro, o evento apresenta, por exemplo, Wernher von Braun (1912-1977), o ``pai da astronáutica". Ele foi o responsável por um dos maiores projetos de pesquisa militar do Terceiro Reich.
Em 38, Von Braun entrou para o partido nacional-socialista e, dois anos depois, tornou-se membro da SS, uma das mais poderosas organizações do governo nazista, considerada criminosa anos depois pelo Tribunal de Nurembergue, que julgou os crimes de guerra.
Von Braun desenvolveu, em 1942, os foguetes do tipo A4/V2, lançados pelos nazistas sobre a cidade de Londres. Os 3.200 foguetes empregados na guerra mataram cerca de 5.000 pessoas, um número menor do que o registrado nos ataques aéreos britânicos.
Mas esses foguetes eram fabricados em série por prisioneiros de campos de concentração. Calcula-se que 20 mil tenham morrido nesse trabalho.
Além de fotos e projetos, está exposta parte do mecanismo de propulsão de um foguete A4/V2 -desenterrada há poucas semanas do antigo campo de concentração subterrâneo Mittelbau-Dora (centro do país).
Ao lado o visitante vê uma montanha de sapatos usados pelos prisioneiros durante o seu trabalho e uma carta de Von Braun: ``Também procurei prisioneiros capazes em Buchenwald", escreveu.
No campo de concentração de Buchenwald foram assassinadas mais de 55 mil pessoas.
Terminada a guerra, em 45, Von Braun se mudou para os EUA. Tornou-se em 60 um dos diretores da Nasa, a agência espacial norte-americana.
Lá desenvolveu o foguete Saturno 5, que em 69 levaria a Apolo 11 para a Lua.
O químico Paul Schlack (1897-1987) foi outro que se deu bem. Pouco antes de estourar a guerra, em 38, ele criou uma fibra sintética à base de diferentes poliamidas, mais barata do que o nylon, mas com muita elasticidade e coesão.
Hoje, essas fibras sintéticas continuam sendo empregadas, por exemplo, na fabricação de meias-calças. Mas nos anos 30 e 40 elas serviram à guerra, na produção de pára-quedas, cordas e cintos.
Por ter acompanhado, durante toda a guerra, a produção dessas fibras para fins militares, Schlack recebeu do governo nazista, em 44, a Ordem do Mérito.
Logo no ano seguinte, depois da capitulação, o químico não hesitou: passou a acompanhar a produção de fibras sintéticas para fins pacíficos.
Schlack acabou recebendo a Ordem do Mérito da antiga Alemanha Ocidental, tornou-se um dos diretores da empresa Hoechst, em Frankfurt, e professor universitário em Stuttgart.
Segundo o coordenador da exposição, o tema ``técnica, poder e guerra" continua atual.
Gottwaldt exemplifica com o fato de hoje a Alemanha exportar armamentos, alegando gerar empregos. ``É como se nossa história tivesse caído no esquecimento."

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