São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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O projeto Sivam, algumas reflexões tardias

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Em torno de ministérios militares, com a necessidade premente de desenvolvimento tecnológico e dificuldades inerentes à administração direta, surgiram muitas empresas de natureza simbiótica. Não haveria grande mal neste fenômeno se não fosse um traço característico da atividade e da cultura militar.
A contínua preocupação com a segurança nacional gera uma atitude corporativista que se agrava com a necessidade, real ou imaginária, de sigilo. De fato é muito difícil para o civil compreender os argumentos usados no caso do projeto Sivam para limitar a circulação livre de informações, uma vez que a empresa encarregada, a Raytheon, serve fundamentalmente o governo norte-americano.
Apesar desta e de outras inconsistências, a dominante presença da preocupação com a segurança nacional aproxima fortemente as empresas simbióticas privadas aos respectivos ministérios. Vínculos poderosos se estabelecem. Pactos nunca explicitados passam a reger as relações entre o poder público e tais companhias privadas.
Não é pois de estranhar que com muita naturalidade mecanismos elaborados com a finalidade de garantir a concorrência sejam afastados com subterfúgios de toda espécie, inclusive argumentos relacionados com a segurança nacional. O grande malefício é a falta de transparência e progressiva perda de senso crítico no processo decisório.
Esta deterioração da capacidade de julgamento se agrava quando se permite que executivos originariamente nos ministérios sejam absorvidos pela empresa simbiótica. Com que autoridade julgará um dirigente ministerial condições de negócios com uma empresa em que, em breve, estará empregado, ou de que será sócio? E se o espírito crítico ficou reduzido a ponto de permitir esta ``concessão", para dizer o menos, deverá também permitir outras que facilitem a aprovação de projetos que assegurem a sobrevivência das empresas simbióticas.
O Sivam faz isto e muito mais. É apenas parte de um vasto programa denominado Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia) que contém os seguintes itens: 1) vigilância e controle ambientais; 2) desenvolvimento regional; 3) vigilância; 4) coordenação de emergências; 5) controle de tráfego aéreo; 6) monitoração das condições meteorológicas; e 7) controle do contrabando.
O Sivam se refere aos itens 3 e 5, tão-somente. Sem que os demais sejam executados simultaneamente, o Sivam se torna uma ``Transamazônica eletrônica", para citar um especialista do setor que prefere, por motivos óbvios, permanecer no anonimato. De que adianta detectar uma penetração de contrabandistas, por exemplo, seja ela por terra, água, ou ar, se não se tem os meios adequados para a interceptação?
Técnicos do setor avaliam os custos do Sivam apenas em pelo menos três vezes aquele oficial. A história aqui se repete de acordo com a tradição bem brasileira de orçamentos subestimados para tornar o programa palatável. Isto ocorreu com todos os grandes projetos brasileiros. O valor de US$ 1,4 bilhão é mais um desses valores promocionais.
Se ficar o Sivam abaixo de US$ 4 bilhões deveríamos nos dar por felizes. E depois quanto custaria o remanescente do Sipam? Alguém já fez as contas? Não é uma irresponsabilidade aprovar o Sivam sem uma análise de custos do resto do programa se o primeiro é parte integrante do segundo?
Alguns insinuam que a implantação do Sipam com a exceção do item 2 custará no mínimo US$ 10 bilhões. E os custos de manutenção e operação? Somente o Sivam exige 20 sítios, 15 deles com radares primários e secundários, e quatro centrais coordenadores espalhados por toda a Amazônia. Alguns em lugares inacessíveis. E todo mundo conhece os problemas que surgem com construções e manutenção de equipamentos na Amazônia. E quem já calculou os custos de operação e manutenção do Sivam, e do Sipam?
Não há dúvidas que a plêiade de ações econômicas que o Sivam arrastará para a Amazônia é gigantesca, principalmente se para ter qualquer consequência concreta vier acompanhado do total do programa Sipam.
Como consequência o projeto gera um poderoso lobby, pois não são apenas os três ministérios militares que estão interessados, além dos Ministérios de Meio Ambiente, Interior, Justiça e Ciência e Tecnologia, com suas respectivas redes de empresas simbióticas, mas vários outros setores da sociedade, inclusive políticos, empresariais e burocráticos.
Por outro lado, o esclarecimento da opinião pública não será fácil de ser alcançado. Especialistas nos campos tecnológicos compreendidos pelo Sivam concentram-se nas empresas que participaram da concorrência fictícia, em órgãos de governo e secundariamente em universidades. Todavia, este é o mesmo governo ``democrático" que ameaçou com demissão empregados de empresas estatais que manifestassem opinião contrária à política de privatização oficial.
Empresas de engenharia dependem direta ou indiretamente do governo, principalmente nestes setores. É muito natural, portanto, que seus membros, por receio de retaliações, se abstenham de comentar. Técnicos de empresas públicas podem perder o emprego. Foi-se o tempo em que admirávamos Voltaire por ``defender até a morte o direito de seus opositores de exprimir opinião contrária à sua". E professores universitários que atuam neste campo também dependem de contratos de pesquisas procedentes de empresas estatais ou de ministérios.
Esta condição redobra a responsabilidade do Congresso Nacional, que não pode deixar acontecer novamente o que tantas vezes já ocorreu neste país, com projetos inviáveis. Assim foi o caso do Acordo Nuclear, em tudo similar ao Sivam; das 20 ou tantas hidroelétricas com a construção interrompida; das termoelétricas a carvão esperando a montagem; da ferrovia do aço, abandonada a meio do caminho; da Transamazônica, e de tantos outros projetos megalomaníacos.
Por que recair sempre na mesma armadilha? No momento que descobríamos que este é o maior projeto da atualidade no gênero em todo o mundo deveríamos ter ficado desconfiados. Quando na década de 70 o Parlamento da Alemanha impôs uma moratória à energia nuclear por quatro anos a indústria atômica daquele país foi levada à beira da falência e o Brasil foi usado para mantê-la viva. A história se repete aqui.
Com o fim da guerra fria, a Raytheon e muitas de suas 20 consorciadas se vêem ameaçadas, mas cá está o Brasil disposto a salvá-las. Parece o destino. Será que não chegou a vez de o Brasil salvar a engenharia e a indústria brasileira?
Não resta dúvidas de que uma proteção do espaço aéreo da Amazônia, progressiva e construída com nossos meios econômicos e intelectuais, como aliás já está sendo feito com o início de dois sítios de radares em Boa Vista e São Gabriel, será certamente muito mais sólida. Não se queimam etapas fugindo ao esforço próprio, alugando conhecimento.
Se merecemos e possuímos vontade política para manter a Amazônia, teremos, como diria Goethe, que conquistá-la, dia-a-dia, interruptamente.

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