São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Quilombismo antigay

LUIZ MOTT

Quilombismo antigay
1685 - Dez anos antes da morte de Zumbi dos Palmares. Em Salvador, capital da Colônia, nosso maior poeta barroco, Gregório de Matos, é denunciado à Santa Inquisição por ter dito inominável blasfêmia: que ``nosso senhor Jesus Cristo era nefando" -isto é, homossexual. Resultado: nada aconteceu ao ``Boca do Inferno".
Os inquisidores mandaram arquivar o processo no aguardo de denúncias mais graves, ficando este documento esquecido na Torre do Tombo de Lisboa (Portugal) até que o descobri em 1983.
1995 - Tricentenário da morte de Zumbi, o maior herói negro das Américas. Um antropólogo paulistano, há 15 anos radicado na mesma Bahia, autor de mais de 1.000 páginas publicadas sobre os africanos e seus descendentes no Brasil escravista, casado no religioso com um negro baiano, divulga cinco pistas etno-históricas sugestivas de que Zumbi dos Palmares ``provavelmente era homossexual", posto inexistir qualquer documento comprobatório de que teve mulher ou filhos. Resultado: nesta semana, na escuridão da noite, sua casa é pichada e o vidro do carro quebrado por alguém que deixou no muro sua identificação: ``Zumbi Filho".
Como explicar que o presidente-rastafari do bloco-afro Ilê Ayê tenha qualificado de ``baixaria" a hipótese de Zumbi ter sido gay? O que passaria pelo bestunto do assessor cultural do Olodum, para afirmar que o antropólogo branco estava ``denegrindo" (isso mesmo, tornando negra!) a imagem do herói dos Palmares?
Pior ainda: como entender que o próprio assessor da presidência da Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, negue a existência de homossexuais na África pré-colonial, acusando os ``brancos" de terem disseminado entre os negros a pederastia, o lesbianismo, o bestialismo e a masturbação?! Só faltou citar a Aids e o Ébola!
O machismo e a homofobia (ódio à homossexualidade) infelizmente não têm cor: apesar da cosmogonia do Candomblé ser muito mais liberal e dionisíaca do que a sexofóbica moral judaico-cristã, lastimavelmente estes pseudo ``filhos de Zumbi" estão pensando e agindo, em questão de sexualidade, pior do que os rabugentos inquisidores, que, mesmo tendo o poder de condenar à morte o Boca do Inferno, simplesmente, ignoraram sua blasfêmia.
Dizer que o filho de Deus era gay, tudo bem. Dizer que Zumbi provavelmente praticou ``o amor que não ousa dizer o nome" dá pedrada.
O heroísmo de Zumbi se deve a sua heterossexualidade ou à sua luta contra a opressão? O fato de ter sido cocho diminui seu valor? Por que então a possibilidade de Zumbi ter amado o mesmo sexo provoca tanta raiva e agressão contra os defensores da cidadania dos homossexuais? Homofobia!
Ser quimbanda (homossexual) não desmerecia ninguém em Angola no tempo de Zumbi. Por que então agora, em plena era dos direitos humanos, tanto preconceito entre seus descendentes?
Aqueles que rotulam de baixaria ou ``nigrinhagem" a hipótese de Zumbi ser também líder dos homossexuais estão traindo o próprio ideal do herói dos Palmares, que em seu quilombo, acolheu de braços abertos todos os ``excluídos": negros, brancos, índios, mestiços, livres e escravos. Ou vão fazer igual à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que deixou os homossexuais de fora?
Inquisição, homofobia e escravidão, nunca mais! Viva Zumbi, herói dos negros, dos deficientes físicos e dos gays!

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