São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 1995
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Paranóico é atração do Brasil na Bienal de Veneza

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A obra do sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) é a estrela do Brasil na Bienal de Veneza de artes plásticas, a começar dia 7 de junho.
O fato contém uma ironia. A inspiração de um doente mental negro e pobre, que passou 51 anos encarcerado num hospício, terá abertas as portas do ``jet set" artístico internacional.
Bispo sofria de esquizofrenia paranóide, distúrbio que se caracteriza pela fragmentação do ego e a mania de perseguição.
Forjou arte em nome da divindade. Segundo ele, Cristo o chamou para reproduzir o mundo em seu quarto e exibir o resultado a Deus no juízo final. Virou objeto de curiosidade. Só ganhou status de arte no anos 80.
Bispo não queria se desfazer de suas criaturas porque esperava ser convocado de repente. Agora 140 delas encherão o pavilhão brasileiro da Bienal. O salão é climatizado e passou por reforma. Abrigará peças recém-limpas e restauradas.
Mas a maior parte de sua produção corre risco de se deteriorar. Claro, estas não estão na mostra.
A Bienal de São Paulo, organizadora da mostra brasileira, fará dia 6 de junho em Veneza uma conferência de imprensa para explicar o valor de Bispo e de Nuno Ramos, 35, que tem uma instalação no evento.
Anteontem embarcaram à Itália 11 caixas com as obras do sergipano. Hoje começa a montagem da exposição.
Ela compreende 80 objetos revestidos de fio azul (``orfas"), cinco estandartes, quatro vitrines (``assemblages"), 40 faixas de miss e uma dezena de artefatos em madeira. A peça principal, ``Manto da Apresentação", é um cobertor bordado com nomes e desenhos e repleto de cordas.
A Bienal aposta no impacto de uma arte precursora da instalação.
``Vamos projetar a obra de Bispo na cena internacional", proclama Edemar Cid Ferreira, presidente da Fundação Bienal.
``Bispo foi um gênio. Sua presença em Veneza contraria a correção política", diz o crítico Nelson Aguilar, curador da mostra. ``Sempre cobram do Brasil um representante popular. Os artistas vão se identificar com essa obra que fugiu do suporte tradicional e mudou a função do espaço em que atuou. E Bispo foi louco, negro, pobre."
Os restauradores contratados pela Bienal dizem ter feito milagres para reerguer conjuntos desconjuntados.
O restaurador norte-americano Richard Trucco, 31, teme que seu trabalho tenha sido inútil: ``As obras voltarão ao lugar de onde vieram."
O lugar se chama Museu Nise da Silveira. É um salão sem condições de conservar arte, sediado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, zona norte do Rio.
Milagres não vão ocorrer com a maior parte das 802 peças inventariadas do artista. Encontram-se rasgadas, quebradas e sujas.
No Pavilhão 10 da colônia, Bispo viveu os últimos 25 anos de sua vida. Ao morrer, o espólio passou ao Ministério da Saúde, responsável pela instituição.
Considerada improdutiva pelo estado, a loucura de Bispo pode dar lucro. Segundo o diretor da colônia, o doutor Laerth Thomé, um paciente custa cerca de R$ 30 por dia. Se o raciocínio é correto, a internação total de Bispo saiu por R$ 9.000. Os especialistas estimam sua obra em cerca de R$ 1 milhão. A parcela de Veneza é avaliada em R$ 350 mil. Se sua obra fosse vendida, renderia quase 1.000% à instituição.
``Bispo provou que é possível criar com lixo e em condições precárias", diz Thomé. ``Temos um acervo precioso em nossas mãos". Um tesouro prestes a se decompor.

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sobre Bispo à pág. 5-3

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