São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 1995
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NY encontra o ladrão de almas Félix Nadar

FERNANDO LUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O fotógrafo francês Félix Nadar (1820-1910) era um ladrão de almas. A prova do crime permanece exposta no Metropolitan Museum, em Nova York, até dia 9 de julho.
Em 98 fotografias, fica clara a capacidade que Nadar tem de apreender a personalidade de quem pára diante de suas lentes.
Reunindo trabalhos feitos entre 1854 e 1864, a exposição oferece uma amostragem da melhor fase de Nadar. Um período relativamente breve em que as mais importantes celebridades de seu tempo posaram para sua câmera. Os conhecidos retratos da atriz Sarah Bernhardt são dessa época.
Boêmio incorrigível, Nadar era figura conhecida entre artistas e escritores. Os companheiros dos cafés acabavam virando clientes do estúdio.
Nadar dobrou até o mais ranzinza detrator da fotografia, Charles Baudelaire. O poeta dizia que a fotografia era ``inimiga mortal das artes", mas rendeu-se às lentes do amigo em 55.
O discurso do autor de ``Flores do Mal" se atualizou. ``Nadar é a mais espantosa expressão de vitalidade. Senti ciúmes por vê-lo triunfar tão bem em tudo o que não é abstrato", escreveu.
O segredo de Nadar está na simplicidade. Não retocava os retratos, como muitos de seus colegas. Ele procurava a semelhança, a identidade. Diante dele apenas o modelo. Por isso, ele rechaçava acessórios para compor uma cena. O fundo liso e escuro lhe era suficiente.
A sequência do Pierrô é emblemática. Para Nadar, esse personagem serve de suporte para a elaboração de um inventário de emoções e atitudes. Surpresa, alegria, atenção, dor e outras sensações se concretizam no papel fotográfico.
A sensibilidade para captar os detalhes que particularizam cada indivíduo certamente foi aguçada enquanto trabalhava como caricaturista, de 46 até 54.
Nadar começou como colaborador em jornais pequenos. Ganhou alguma fama e nenhum dinheiro com o ``Panthéon " -gravura que reunia 249 artistas, poetas, historiadores e jornalistas.
Cansado da miséria (chegou a passar fome), decidiu, aos 34 anos, se arriscar no mercado da fotografia.
As técnicas haviam se desenvolvido e o custo baixado a ponto de qualquer um poder ter sua imagem registrada para posteridade, ou para mostrar aos amigos. O século 19 democratizou a vaidade.
Ninguém mais precisava ir atrás de um pintor, posar durante horas e esperar alguns dias para voltar para casa com o quadro embaixo do braço -depois de desembolsar uma quantia considerável. Agora era instantâneo e barato.
Pioneiro
A versatilidade e a inquietação de Nadar fizeram dele um pioneiro. Fez as primeiras fotos aéreas e subterrâneas. Os esgotos e a catacumbas de Paris estão na exposição pela determinação de Nadar em fazer o que ninguém havia feito antes.
O gosto por fotografias científicas e técnicas era outro interesse. Há duas fotos impressionantes de um hermafrodita na exposição. Foi das poucas vezes que o fotógrafo usou o que restara da vocação de ex-estudante de medicina.
As fotos aéreas -que não estão expostas- são um caso mais sério. Nadar tinha obsessão por balonismo. Teve seu próprio balão, parceiro de peripécias e pequenos desastres. Ele chegou a quebrar as pernas em um pouso malfeito.
Um de seus amigos, o pai da ficção científica, Júlio Verne, inspirou-se no fotógrafo para escrever ``Cinco Semanas em um Balão".
Os vôos incertos de Nadar rendiam gozações. Em uma caricatura feita por Daumier em 62, o fotógrafo tentava equilibrar-se na cesta de um balão. A legenda destilava veneno: ``Nadar elevando a fotografia para o nível da arte".
Mas era um pouco isso o que acontecia. A amizade de Nadar com os artistas fez com que ele cedesse seu estúdio para a primeira exposição impressionista, em 74.
Chega a ser irônico. As artes plásticas deram sua mais radical guinada dentro de um estúdio fotográfico. Degas, Renoir, Pissarro e outros artistas da mesma envergadura admiravam, mais que o amigo Nadar, o seu trabalho.
Dentro da própria família, contudo, Nadar enfrentou problemas. Foi enganado pelo caçula, Adrien Tournachon, que aproveitou-se do pseudônimo do irmão. O caso acabou na justiça. Félix garantiu a exclusividade do nome Nadar.
Com o filho Paul, nascido em 56, existiam divergências. Ao contrário do pai, ele recorria a retoques para rejuvenescer as pessoas.
Na década de 70, Paul assume progressivamente os negócios da família e enfatiza o lado comercial.
Ajudado pelo sobrenome, Paul mantém o estúdio depois da morte do pai, em 1910. Estima-se que tenham sido feitas 400 mil fotos até o fechamento do ateliê, pouco após a morte de Paul, em 1939.
Félix Nadar era um republicano ferrenho. Teve tempo de assistir o império francês ruir duas vezes, em 1848 e em 1871. Certa vez, o fotógrafo saiu à francesa de uma recepção para não ter que cumprimentar o imperador.
Foi esse Nadar, radical em suas convicções políticas e estéticas, quem criou alguns dos mais belos momentos da história da fotografia.

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