São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 1995
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Manter o rumo com ventos adversos

MARIO CESAR FLORES

A corrupção e a incompetência, o corporativismo, o clientelismo, o patrimonialismo e outras práticas prejudiciais permeiam a atividade e o cenário público brasileiro há séculos, gerando distorções na formulação do direito, na aplicação da justiça e na conduta administrativa. No decorrer do tempo, uma ou outra adquiriu evidência, mas nunca, qualquer uma delas, foi definitivamente sanada.
Críticas e contramedidas, construtivas e bem-intencionadas, interesseiras ou demagógicas, sempre existiram, mas elas são mais sensíveis hoje porque apoiadas na eficiência sensacionalista da mídia moderna e em preceitos democráticos que protegem o direito à opinião e à notícia, mesmo quando equivocadas.
A busca de rumos ética e funcionalmente corretos para a vida político-administrativa é necessária, mas a forma emocional e por vezes irresponsável que a vem caracterizando, comumente alicerçada sobre conhecimentos superficiais, distorcidos, preconceituosos, ideologizados ou simplesmente equivocados, faz da administração pública o alvo fácil de acusações de toda ordem.
Algumas são merecedoras de crédito e atenção, mas outras são fruto de interesses feridos, da cupidez ou de radicalizações pouco afeitas à conciliação democrática, por vezes amparadas na convicção da impunidade (ainda que em tese não exista impunidade legal), encobertas pela covardia do anonimato ou decorrentes de obtenção ilegal de dados, por pecúnia ou sectarismo, uma e outra admitidas como ``virtude cívica" nos regimes fascistas e comunistas, mas incompatíveis com o Estado democrático de Direito, que elas enfraquecem e desacreditam.
Esse clima estimula a crítica bem ou mal fundamentada, mas geralmente sensacionalista (qualquer comentário adquire sabor acusatório), à honra e à imagem moral e funcional de pessoas e instituições, podendo inclusive gerar prejuízo ao erário público.
Em alguns casos ele chega a produzir ações judiciais, algumas necessárias e altruístas, mas outras apenas interesseiras; as populares, com seus autores protegidos constitucionalmente dos ônus da sucumbência -incentivo óbvio à precipitação e eventualmente à leviandade.
Seu corolário é a propensão a atribuir genericamente ao serviço público os pecados da incompetência e da venalidade: honestos e venais, competentes e incompetentes, são rotulados na dúvida geral, o que afeta pouco os incapazes e os venais, naturalmente propensos a conviver com ela, mas fere os capazes e honestos, que, acuados pelo receio de se verem injustamente expostos ao opróbrio, ao bloqueio sensacionalista de sua atuação bem-intencionada e à frustração funcional, pouco a pouco se sentem tentados a evitar ou, pelo menos, reduzir a profundidade das decisões sujeitas a controvérsias.
Em suma: o receio das acusações injustas ou precipitadas, num cenário sociopolítico de inversão do direito clássico (para fins práticos perante a opinião pública, cabe ao acusado provar a inocência e não ao acusador, a culpa), acaba por induzir algum grau de fragilidade, procrastinação ou indefinição no processo decisório.
Entre a crítica por lentidão, indefinição ou adoção de ações limitadas (não-conclusivas) e a execração injusta (quando injusta), que dificilmente é responsabilizada e revertida de todo, o responsável pela decisão vai acabar preferindo reduzir seu conteúdo necessário mas controvertido ou ``empurrar o problema com a barriga", protegendo-se no imobilismo da inserção generalizada no denominador comum da venalidade ou da incompetência.
Por enquanto ainda há coragem de decidir, mesmo sob risco de ferir interesses e provocar dissabores, mas o encolhimento cauteloso já não é nulo, e é preciso sustar seu desenvolvimento. Orientados pelo piloto, o presidente da República, os timoneiros do governo devem manter o controle dos rumos da administração pública, a despeito dos ventos soprados por interesses econômicos, corporativos, cartoriais, político-ideológicos e pelo sensacionalismo de consumo de massa.
Para facilitar a tarefa dessa gente, convém que se produzam meios legais tão velozes quanto a detração e a informação incorreta, capazes de tornar factível a rápida reparação do malfeito e a promoção da respectiva responsabilidade, para que o lídimo direito à opinião e à notícia não seja o flagelo do direito à preservação da honra e imagem, até prova em contrário.

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