São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 1995
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Debate sobre Zumbi revela preconceitos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

S erá que Zumbi era homossexual? O antropólogo Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, acha provável. A hipótese suscitou protestos de líderes negros. O carro de Mott foi pichado: ``Zumbi Vive".
À primeira vista, a discussão é bastante tola. Saber qual a sexualidade de Zumbi, 300 anos depois de sua morte, não faz muita diferença. Como se costuma dizer, ``isso era assunto dele".
Ou será que não? Há no fundo uma certa hipocrisia quando se diz que a vida particular de fulano ``não interessa a ninguém", que é uma questão de foro íntimo. Pode ser questão de foro íntimo, mas todo mundo se interessa e comenta.
Luta-se contra a opressão porque se é oprimido, não porque há 300 anos alguém foi herói. Essa coisa de símbolos históricos e de grandes personalidades tem um valor muito relativo. Serve para comemorações, cultos, feriados; serve como pretexto para ``colocar o tema em discussão". Mas ou o tema está em discussão de fato, no cotidiano presente, ou tudo se transforma em culto oficial, blablablá edificante.
Todo país tem suas estátuas, seus feriados e mártires oficiais. Tem sido estratégia de movimentos de libertação e contestação criar uma espécie de anti-história, história dos vencidos, revalorizando a memória de heróis não-oficiais.
Essa estratégia tem, a meu ver, um problema. Quando a história oficial cultua, por exemplo, d. Pedro 1º ou Tiradentes, isso tem um significado específico, que é o de afirmar uma conquista já feita; traz à situação histórica presente uma carga positiva. A comemoração se faz para dizer ``sim" ao presente. A realidade nacional é uma construção heróica, é uma obra de gigantes; a reverência ao passado é conservadora por definição.
Mas quando se fala em ``história dos vencidos" as coisas se complicam. Pois não há, a rigor, o que comemorar.
Sempre se pode dizer que o herói das camadas oprimidas é justamente o homem comum, a pessoa anônima... O Grande Vencido é uma contradição em termos, é a oficialização do inoficializável. Vale como inspiração para a luta; mas o que de fato inspira a luta é a opressão, não o herói.
Parece-me óbvio que com Zumbi ou sem Zumbi, e sendo ou não ele gay, o movimento dos negros tem todos os motivos para continuar forte. E do ponto de vista do movimento gay? Em tese, é útil para a luta dos homossexuais contar com grandes personalidades.
Mas aí entramos em outros paradoxos. Sempre se soube que Michelangelo era gay, e que entre os heróis a filósofos da Grécia a pederastia era regra. De um lado, isso serve para apontar a relatividade histórica dos costumes, provando a estreiteza de vistas de quem é preconceituoso. De outro, saber disso nunca diminuiu o preconceito. Quem é preconceituoso pode dizer: ``Michelangelo era um grande artista, mas..."
Nesse sentido, dizer que Zumbi era provavelmente homossexual não muda nada. Houve homossexuais também entre os nazistas, e quem for preconceituoso pode ver relação entre uma coisa e outra.
Há uma questão de lógica envolvida na discussão. O preconceito (antinegro, antigay) deve ser combatido. Muito bem. Mas qual é a atitude antipreconceituosa por excelência? Aí as coisas se complicam, porque há muitas atitudes possíveis.
Pode-se ser antipreconceituoso dizendo que o grupo X não tem nada de diferente dos demais. Pode-se também ser antipreconceituoso dizendo que o grupo X é melhor que os demais. Pode-se dizer que todo mundo, sem saber ou sabendo, pertence ao grupo X. Pode-se dizer que características geralmente apontadas como típicas do grupo X, em vez de serem ``ruins", são ``boas".
Estratégias políticas diferentes surgem, então, como consequência. Pode-se insistir na identidade grupal, querendo fortalecê-la para combater o preconceito. E pode-se também insistir na ausência de identidade grupal, para igualmente combater o preconceito.
Um militante gay pode afirmar, por exemplo, que os gays são tão bons soldados quanto os heterossexuais. Pode dizer que são melhores soldados. Pode dizer que não, que os gays não são bons soldados porque são mais pacíficos e gentis.
Entre garantir direitos iguais a todos os indivíduos e promover o orgulho do gueto, as coisas se embaralham, porque estão em jogo duas lutas distintas: a que se trava contra a discriminação (leis de apartheid, injustiças na seleção de emprego etc.) e a que se trava contra o preconceito (pode-se imaginar uma sociedade em que negros ganhem tão bem quanto brancos, não sofram nenhuma discriminação legal, mas onde sejam fortemente desprezados).
E um efeito irônico da militância antipreconceito é precisamente o de revelar preconceitos. Tanto no caso do racismo, quanto no da homofobia, é muito mais comum o preconceito que se exerce entre quatro paredes do que o que se manifesta publicamente. Hoje em dia, é raro que o preconceito ``ouse dizer seu nome". A estratégia política passa a ser, então, a de suscitar as reações que se quer combater. Seria frustrante se a tese de Luiz Mott caísse no vazio. Infelizmente, não caiu.

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