São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Chega de Ébola e Internet

MARCELO LEITE

Ninguém aguenta mais ouvir falar de dois assuntos: o vírus Ébola e a rede de computadores Internet.
A maioria das revistas importantes publicou recentemente reportagens de capa sobre esses temas. Jornais pululam de notícias, nem sempre compreensíveis. As pessoas se sentem compelidas a informar-se e a falar, sem parar, desses novos sinais dos tempos.
Se a Internet veio para ficar, no mundo inteiro, o mesmo não se pode dizer com segurança do vírus que já matou mais de uma centena de pessoas -no Zaire.
O Ébola é o exterminador em pessoa. Mata em menos de dez dias até 90% dos doentes, em meio a sofrimento inenarrável: os órgãos internos se liquefazem, hemorragias expelem golfadas de sangue pelos poros e todos os orifícios do corpo.
Para culminar tal quadro de terror ancestral, a doença brota misteriosa da selva, ainda por cima africana. Acrescente-se à mistura um filme e um livro de sucesso, lançados poucas semanas antes da epidemia no longínquo Zaire. Está cheio o prato jornalístico.
Alarme
A Folha, como todos os jornais e revistas, serviu-se copiosamente. Quase todos os dias, há semanas, publica reportagens que realimentam o alarme dos mais crédulos, por esclarecedoras que pretendam ser. Saiu até uma explicando que seria difícil o vírus alcançar a cidade de Santos desde um navio quilômetros ao largo do porto (18/5, pág. 1-14).
Aproveitei o exagero para questionar a Redação sobre uma das informações mais aterrorizantes veiculadas sobre o Ébola, a de que o vírus também se propaga pelo ar (desta vez, ao menos, ninguém falou em filhotes de perdiz, ou perdigotos).
Um dos trabalhos mais completos e didáticos que li saiu na revista norte-americana "Newsweek. Ali se afirmava que a contaminação pelo ar era privativa de um primo do Ébola, o também filovírus Marburg.
O editor-assistente de Ciência, Cláudio Csillag, informou que o contágio por via aérea tinha sido confirmado em laboratório. Assim, a transmissão da doença não ocorreria exclusivamente por meio dos fluidos corporais (sangue, urina, saliva etc.).
Até hoje a Folha não esclareceu direito para seus leitores qual é a principal forma de contágio. Certamente, são os fluidos corporais. Desta perspectiva, no entanto, o Ébola torna-se bem menos dramático.
Qualquer pessoa pode imaginar-se num aeroporto respirando o mesmo ar exalado por um empestado proveniente do Zaire, ou ingerindo atum colérico do Peru. Bem mais difícil é enxergar-se manipulando vísceras ou fezes de um africano morto.
Frenesi
Os temas do contágio pelo ar e do provável exagero com a epidemia voltaram à tona na última terça-feira. A insistente cobertura da Folha alcançou nesse dia um clímax de página inteira (1-12). Nela, um extenso quadro sobre a doença, surpresa, só mencionava o contato com líquidos corporais como forma de contaminação.
Entre alarmado e curioso, li ainda a reportagem "Brasil não tem como diagnosticar infecção. Sua informação mais importante estava bem no meio do texto, sem destaque: "As chances de alguém infectado chegar ao país (...) é muito pequena.
Diante disso, anotei em minha crítica interna da edição, relatório enviado a todos os jornalistas da Folha no começo da tarde:
"O frenesi provocado pela epidemia (...) parece provir muito mais do terror causado pela descrição de sintomas popularizados por um filme e um best seller do que de uma avaliação racional do perigo que representa. Esta última, no meu modo de entender, deve ser a perspectiva a adotar nas reportagens.
Respondeu a editora de Exterior e Ciência, Andréa Fornes:
"O ombudsman diz que a Folha está exagerando a cobertura do assunto, a meu ver, um dos mais interessantes do jornalismo científico e médico dos últimos tempos.
(...)
"O assunto é importante por várias razões: já morreram por causa do vírus mais de cem pessoas num curto intervalo de tempo; estamos na era dos vírus emergentes, que preocupa governos do mundo inteiro; o Ébola mata rapidamente e de forma cruel; não está totalmente descartada a possibilidade de o vírus chegar ao Brasil. O risco, apesar de pequeno, existe. (...)
A resposta foi integralmente reproduzida na crítica interna de quinta-feira, com uma tréplica.
Ponderei que não era tão pouco tempo assim (cinco meses), e que se a epidemia fosse o que realmente dela se pintava na imprensa em geral -e não só na Folha-, um vírus letal e transmitido pelo ar, até que uma centena de mortos numa cidade de 500 mil habitantes (Kikwit) não seria tanto assim. E repisei o argumento central:
"A epidemia só está tendo o espaço e o destaque atual porque coincidiu com o sucesso de um filme e de um best seller. Não há nada de errado nisso, claro. É um dos truques do jornalismo científico, pegar carona nesses produtos de massa para explicar tudo sobre o assunto. Inclusive para desmistificá-los, quando for o caso. Foi o caso de `Parque dos Dinossauros'; pode ser o caso do Ébola.

O leitor pode dormir intranquilo, se quiser, mas ponha a culpa na falta de gás e na greve dos petroleiros. É um bode expiatório bem melhor que o Ébola, como não cansaram de exemplificar os jornais dos últimos dias.

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