São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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O efeito São Mateus

EDUARDO GIANNETTI

Erramos: 04/06/95
Há males que vêm para o bem. Os choques do petróleo, por exemplo, fizeram cair o número de acidentes e mortes nas estradas do mundo. A recessão reduz a poluição, a destruição da camada de ozônio e a destruição de florestas. A greve dos petroleiros contribuiu para que a população e os políticos se dessem conta da necessidade de pôr fim a esta herança caduca da era Vargas que são os monopólios constitucionais.
Mas se é verdade que o mal pode alimentar o bem, não é menos verdade que o bem também pode se dar mal. Nada garante que, ao se tentar fazer o bem, não se termine involuntariamente jogando mais lenha na fogueira do mal. O tratado de paz de Munique não levou à ``paz em nossa era" (Chamberlain), mas a uma guerra ainda mais cruenta. A criança mimada e paparicada de hoje é o adulto estragado e infeliz de amanhã. A esmola impulsiva na mão da criança pedinte pode ser um estímulo à exploração de menores.
A terceira e última possibilidade lógica nas relações entre o bem e o mal é a de que a tendência de cada um deles seja produzir não o seu oposto, como nos casos acima, mas frutificar em mais de si mesmo. Sai a equação paradoxal da conversão espontânea do mal em bem (e vice-versa) e entra em cena o ``feedback positivo" pelo qual tanto o bem tende a reforçar o bem quanto o mal a perpetuar e potencializar o mal. Quer dizer: a vocação do bem é produzir mais bem; a do mal, ainda mais mal.
O ``efeito São Mateus" -inspirado provavelmente na experiência prévia do apóstolo como coletor de impostos no império romano- ilustra com perfeição essa possibilidade: ``Para todo aquele que tem será dado e ele terá em abundância; mas daquele que não tem será tirado e ele perderá até mesmo aquilo que tiver". Desgraça pouca é bobagem.
A economia e a vida prática estão repletas de causalidades circulares deste tipo. A boa saúde, por exemplo, protege naturalmente o organismo contra possíveis doenças; a debilidade física, ao contrário, torna-o ainda mais suscetível a outros males. Os que têm mais facilidade para aprender coisas novas não são aqueles que pouco sabem e mais precisam; são justamente aqueles que já aprenderam e sabem muito. Se o amor atrai, a depressão afugenta.
O efeito São Mateus está na raiz de alguns dos mais intratáveis problemas sociais. No mercado de trabalho, por exemplo, é mais fácil para quem já está empregado encontrar um novo emprego do que para quem está desempregado. Isso ocorre porque o simples fato de se estar empregado é visto pelo empregador como índice de mérito e competência. Daí que, via de regra, quanto mais tempo se fica desempregado, menor é a chance de se conseguir um emprego. Estar sem emprego é a desgraça do desempregado.
Outro exemplo de fenômeno desse tipo -e que a prática de juros elevados como os vigentes no Brasil torna particularmente grave e visível- é o que ocorre no mercado financeiro. Uma observação de Adam Smith vai ao nó da questão: ``Dinheiro, diz o provérbio, faz dinheiro. Quando se tem um pouco é com frequência fácil ganhar mais; a grande dificuldade é conseguir este pouco". Ou como dizia Mill: ``Os que acham fácil ganhar dinheiro não são os pobres, mas os ricos". Quem tem, pode. Quem deve, se sacode.
Mas a expressão mais dramática, injusta e cruel do efeito São Mateus na vida brasileira é o destino que ele reserva ao enorme contingente de crianças e adolescentes perambulando pelas ruas das grandes cidades em busca de esmolas e alimento.
Alguém pode ser responsabilizado por ter nascido em Bruxelas ou em Calcutá? Alguém fez por merecer nascer na família em que nasceu? Nossos menores de rua são vítimas de um acidente cego e bestial -uma circunstância da qual eles não têm a menor culpa, da qual eles jamais sairão sem ajuda vinda de fora e que, é bom lembrar, poderia ter arruinado a vida de qualquer um de nós ou de nossos filhos.
O acidente que os condena à indigência, desde a primeira infância, é o de terem nascido em famílias cuja própria condição socioeconômica e falta de preparo impedem que elas invistam adequadamente na saúde, educação e capacitação profissional de seus membros mais jovens. Em vez de receberem tal investimento, esses jovens são lançados desde cedo na mais crua luta pela sobrevivência e são eles que acabam tendo que financiar, pelo menos parcialmente, os gastos de suas famílias.
Ao fazerem isso, no entanto, eles estão não apenas trocando sua chance de obter uma educação básica por uma renda irrisória, mas estão comprometendo todo o seu futuro econômico pelo resto da vida, ou seja, sacrificando seus interesses permanentes pelo interesse imediato de suas famílias de obter um acréscimo de renda. O custo real dessa decisão para o indivíduo, seus descendentes e a comunidade onde vivem esperam largamente o benefício efêmero da renda da mendicância e do trabalho precoce.
Como resultado, a sociedade como um todo fica privada da riqueza que seria gerada por indivíduos dotados de maior qualificação profissional e competência para a vida econômica, enquanto a superabundância de mão-de-obra não-qualificada -inchada pela participação de menores em idade escolar- deprime o salário real do trabalhador comum. A miséria e o despreparo de uns são o berço da inépcia e da baixíssima produtividade de outros -fecha-se o ciclo da pobreza e da incompetência.
Como escapar do efeito São Mateus? Como romper o círculo de ferro dessa dinâmica perversa que há séculos domina o quadro social brasileiro e faz com que o mal alimente, perpetue e potencialize o mal?
Milagres, panacéias dialéticas e soluções a jato não existem. Nada resolve tudo. Se mercados livres fossem sinônimo de exclusão social a miséria no Canadá seria maior do que na Índia. Mas seria ilusão imaginar que o mercado possa dar conta sozinho do recado. Para quebrar o efeito São Mateus, a cooperação entre o Estado e o setor privado é indispensável.
O Brasil não irá pertencer ao mundo moderno enquanto aceitar conviver com o baixo grau de escolarização e a péssima qualidade do ensino básico hoje existentes. Uma política social objetivando a cidadania plena para o maior número de brasileiros precisa concentrar os recursos disponíveis na formação básica e na capacitação para a vida profissional das crianças e jovens em famílias de baixa renda.
A desigualdade de oportunidades, quando ela se torna obscena e absurda, é o caminho mais curto para uma sociedade de párias e marajás. O Brasil continuará sendo um país pobre e injusto enquanto a condição social da família em que uma pessoa tiver a sorte ou azar de nascer exercer um papel mais importante na definição do seu futuro econômico do que outra coisa ou escolha que ela possa fazer.

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