São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Faletto, o amigo independente

VINICIUS TORRES FREIRE
DO ENVIADO ESPECIAL AO CHILE

O sociólogo chileno Enzo Faletto, 59, formulou e escreveu, com Fernando Henrique Cardoso, a síntese do que ficou conhecido no Brasil como ``a" teoria da dependência (da qual existem outras versões).
Os dois se encontraram em 1964, no Chile, então quase uma ``Suíça", no que dizia respeito às condições de trabalho intelectual, se considerado o panorama político latino-americano da época -golpes, regimes militares e revoluções.
Escreveram ``Dependência e Desenvolvimento na América Latina" entre 1966 e 1967, onde desenvolveram a análise (tanto Faletto como FHC relativizam o peso do termo ``teoria" para seus trabalhos), que se demonstrou mais consistente e correta sobre as perspectivas de desenvolvimento das economias periféricas.
Se o Chile e a dependência foram um ponto de confluência, também marcaram o começo do distanciamento político (mais) e intelectual (menos forte) destes dois sociólogos, amigos até hoje. FHC entrou para a política institucional, que Faletto abomina. O chileno se diz de esquerda e, para ser assumidamente do contra, marxista.
FHC, como sociólogo, ainda trabalhou na dependência, passando depois a pensar os temas institucionais da transição brasileira. Faletto hoje se dedica a pensar o desmantelamento de instituições públicas (a educação chilena), das identidades sociais e da idéia de solidariedade política e social.
Muitíssimo bem humorado, o chileno relembra, em um café em Santiago, os tempos da formação de suas idéias e de FHC na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) e no Chile, ironiza a suposta ``direitização" do amigo e diz que votaria no PT, contra o tucano, na eleição presidencial.

Folha - O senhor continua amigo de FHC? Foi convidado para a posse?
Faletto - Gosto muito do Fernando, somos amigos, mas não fui à posse. Não sei se existe a expressão no Brasil, mas no Chile se diz ``muy de barrio". Quando ele veio ao Chile estava ocupadíssimo, falei só ``oi, como vai", soube que teve uma neta, etc. Mas sou ``muy de barrio" e, como meu amigo está no poder, deixa de ser meu amigo (risos). É uma brincadeira.
Folha - O sr. acha que, como presidente, FHC continua a pensar sua prática política como pensava quando era apenas intelectual?
Faletto - Veja, o mundo brasileiro é muito especial. Visto muito de fora, por exemplo, a continuidade do Império parece muito forte (risos). Mas, a sério, o mundo intelectual brasileiro tem uma peculiaridade que o faz muito diferente do mundo chileno ou argentino. No Brasil, por exemplo, o intelectual tem um peso político muito mais forte, as idéias têm um peso político forte.
Veja seu próprio jornal. Diariamente, tem pelo menos uma página dedicada aos intelectuais. No Chile não acontece isso, imagine, perguntarem a um intelectual o que ele acha (risos). No Brasil, parece-me que há uma expectativa grande de que ele venha a desempenhar seu papel como um homem de idéias.
Folha - O sr. acha que FHC, quando projeta e propõe as reformas de seu programa de governo, ainda as pensa como o sociólogo que foi? Partidos e intelectuais hoje na oposição dizem que FHC simplesmente aderiu à direita pragmaticamente para chegar ao poder e que estas alianças o impediriam de realizar qualquer coisa que possa se basear no que ele já tenha pensado.
Faletto - Como disse, acompanho de longe a política brasileira. Mas penso que não só o Fernando, mas Paulo Renato (Souza, ministro da Educação), (o ministro da Cultura Francisco) Weffort, (o ministro do Planejamento José) Serra, Vilmar (Farias, sociólogo, amigo de FHC e assessor do governo) podem desempenhar um papel importante neste sentido. Estive com o Weffort duas ou três semanas antes da eleição. Disse-me que Fernando ganharia, o que seria a melhor coisa que poderia acontecer para o Brasil. Ele, um petista (risos).
Tenho a impressão, não sei muito bem, não vou ao Brasil quase há 15 anos, mas esse grupo de pessoas de quem falei tem muita capacidade intelectual e através deles talvez se possa ver o peso das idéias na condução da política. Mas é certo que realismo na política sempre acaba por passar por realismo de direita, certo? (risos) Se passaram da esquerda para a direita? Isso é certo, tem que se reconhecer.
Se, um dia, um jornalista brasileiro me perguntasse em quem votaria, diria que no PT, obviamente, brigando com Fernando (risos). A coisa mais importante que ocorreu na política brasileira nos últimos tempos foi o PT, foi a maior novidade.
Folha - O que FHC dizia sobre o Brasil no exílio?
Faletto - A atitude dele impressionava por vários motivos. Havia muitos brasileiros exilados, não vou citar nomes, que continuavam com seus papéis brasileiros. Um ainda se considerava ministro. Tinha-se de tratá-lo como ``sr. ministro" (risos). Fernando não.
Folha - Ele ainda não era ministro.
Faletto - Claro! (risos). Mas ele nunca deixou parecer que se sentia no exílio. Era uma pessoa aberta, que desfrutava da experiência chilena, mas sempre falava do enorme retrocesso que era o regime militar em relação à participação popular, que vinha crescendo, da incorporação popular ao mundo político. Mas ele tentava prosseguir sua carreira acadêmica e isso teve enorme importância no mundo intelectual da América Latina.
Quando, mais tarde, ele criou o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), no meio da ditadura, foi um espanto: por manter um centro de pensamento rigoroso naquele ambiente e, também, mostrar que era possível se ligar à política sem perder a condição de intelectual. Sua eleição como presidente também foi vista de maneira muito positiva no mundo intelectual chileno. Aliás, já está servindo como modelo para uns dois ou três. ``Se ele pode, por que não eu?" (risos)
Folha - Faz parte do programa político de FHC uma tentativa de inserção na economia mundial, que vai tentar preservar alguma capacidade de coordenação do Estado, uma inserção competitiva. É possível?
Faletto - Pelo menos é uma política industrial. Até agora, não se discutia mais o assunto, não se propunha nada. Mas é preciso também uma visão de nação e do problema da exclusão social. Se vai dar certo? Não sei. A mudança na economia mundial é suficientemente forte e grande para que eu possa imaginar agora uma opção. Mas é certo que vai ter de se enfrentar o tema da exclusão. Há um consenso de que, sem enfrentar esse problema, não é possível pensar qualquer esquema de desenvolvimento.
Folha - Seria preciso então pensar a nova forma de relacionamento do Estado nacional, das condições políticas internas, com a nova forma da economia mundializada. O sr. não acha que, no final dos anos 70 e nos 80, essa discussão foi abandonada? Não teria havido a ilusão de que o desenvolvimento tinha se tornado um problema de gestão?
Faletto - Exatamente. Mas não é possível pensar o problema sem imaginar os atores que formulariam ou conduziriam as opções de inserção organizada na economia mundial. A discussão se concentrou na eficácia do Estado, na gerência. Não se discutiam políticas, mesmo política industrial. Não havia propostas. A questão era saber se um ou outro empresário ia encontrar seu nicho e nada de políticas industriais de fôlego. Mas quem vai recolocar estas questões? Qual grupo social vai pensá-lo a médio e longo prazo?

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