São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Faletto, o amigo independente

VINICIUS TORRES FREIRE

O que eu constato é a incapacidade de gerar políticas, o Estado se desmantelou, até mesmo a universidade foi destruída

Por aí, não funciona. O Estado poderia fazer? Mas ele está desmantelado. Setores médios e operários tampouco. Não vou indicar saída. O que constato é a liquidação das capacidades de gerar políticas. Algumas destas, nos anos 50, surgiram da universidade, que pensava o problema nacional e formulava opções, o que foi muito forte no caso chileno. Hoje em dia, isto desapareceu, a universidade também foi destruída, os pesquisadores têm que arrumar projetos externos para poderem trabalhar, seja em problemas imediatos de governo ou mesmo de empresas.
Folha - Como o sr. se interessou pelos problemas de desenvolvimento?
Faletto - Formei-me em história pela Universidade do Chile. Passei em 1957 para o Instituto de Sociologia. Foi um acidente, não vocação, então ninguém sabia que existia sociologia. Em 1961/62, entrei na Cepal. Quem me levou foi um velho professor meu na Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), um espanhol, José Medina Echevarría. Don José dirigia o setor de desenvolvimento social na Cepal.
Folha - Quando começou o trabalho com FHC?
Faletto - Em 1964, chegaram FHC, Weffort e o Vilmar e passei a trabalhar com eles. Mas, antes que FHC chegasse, eu trabalhava com don José em um informe para a Conferência de Mar del Plata, em 1962, ``O desenvolvimento social na América Latina", que era a contraparte de um informe sobre o desenvolvimento econômico.
Era a primeira vez que se procurava realizar um trabalho sistemático sobre o desenvolvimento social da América Latina. Don José já havia feito algumas coisas sobre os aspectos sociais do desenvolvimento, mas era uma formulação teórica, isto é, como enfocar uma sociologia do desenvolvimento na AL. Era algo como os trabalhos do (sociólogo argentino Gino) Germani, de Florestan, no Brasil.
No trabalho para o informe havia-se pensado em alguns grupos sociais claros como importantes para o desenvolvimento. Um deles era o grupo empresarial. Em vários países, os pesquisadores se encarregaram de estudar os empresários. No Brasil, quem fez este trabalho foi FHC. Foi a primeira vez que tive conhecimento do seu trabalho.
Folha - Quando começou a ser tratado o desenvolvimento?
Faletto - Com a chegada de Fernando e Weffort, em 1964, fortaleceu-se muito o grupo de sociologia da Cepal, que era muito pequeno. Isto tornou muito melhor o diálogo entre o grupo de economistas da Cepal e o de sociólogos.
Quando foi criado o Ilpes (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social), a intenção era a de formar planificadores, técnicos, mas também se formava um pensamento sobre o desenvolvimento, sobre a história, concreta, da América Latina.
Passou-se a considerar também comportamentos sociais, dos setores empresariais, médios, operários. Isto passou a ser parte da formação dos economistas, então todos neoclássicos. Claro que havia figuras como Celso Furtado, mas não era regra geral essa diferença. Mas a formação acadêmica de todo mundo era Marshall (Alfred Marshall, economista e matemático inglês, 1842-1924).
Folha - Qual era o peso de Raul Prebisch na época?
Faletto - Essa abertura para o sociológico começou um pouco também via Prebisch, que era leitor de Keynes (John Maynard, economista inglês 1883-1946, de linha oposta a Marshall, cuja teoria macroeconômica conduziu a políticas de intervenção dirigida do Estado na economia), tinha muita sensibilidade por aspectos políticos e sociais. Então, começou o diálogo entre sociólogos e economistas da Cepal, muitos deles com sensibilidade política, os chilenos, e que participaram do governo de Unidade Popular (de Salvador Allende, socialista, derrubado pelo golpe de 1973 no Chile). Chegou-se então a uma visão da economia política da América Latina, que não era marxista.
Mas o pensamento que sai da Cepal deve também ao clima político da América Latina, e esse é um ponto importante. O governo Goulart, a revolução cubana, Alvarado no Peru, Allende, enfim, a vida política colocava o tema das opções político-sociais, motivavam um debate muito forte.
Folha - Qual a influência dos brasileiros exilados no Chile?
Faletto - A reflexão de 1964, 1965 da Cepal era sobre a estagnação. Não sei onde estávamos com a cabeça, havia crescimento de 3%, 4%, na América Latina, mas estagnação não havia. Mas isso era o que nos preocupava: a taxa de crescimento decrescia. Alguns deles começaram a repensar isso.
Folha - Já era a tese de que não era possível desenvolvimento auto-sustentado?
Faletto - Exatamente. Começaram as explicações econômicas sobre o tema da estagnação. Uma delas, a mais forte, era a da passagem de uma etapa de substituição fácil de importações pela fase difícil. Como explicar a interrupção dessa tendência de industrialização? Por que não chegava o momento da autonomia, em que a economia dos países periféricos se desenvolveria com suas próprias pernas? Começamos a investigar isso no seminário de 1964.
Folha - Quem estava lá?
Faletto - Celso Furtado, Raul Prebisch, FHC, Weffort, etc., o pessoal da Cepal. A impressão que tínhamos é que, do ponto de vista estritamente econômico, as condições para que se desse o desenvolvimento sustentado existiam. A idéia da estagnação não se justificava. Aí começaram a aparecer duas dimensões do problema do crescimento. Uma, por causa da relação externa. Isso os economistas tinham analisado bastante: a deterioração dos termos de troca, as características estruturais da América Latina. O outro tema eram as condições políticas.
Os economistas tendiam e tendem a entender como política exclusivamente a política de governo, a capacidade dos governos de implementarem políticas, e têm muita dificuldade de entender a política como um processo social. Começamos a trabalhar o que havia de enfoque teórico nesta época, que era a teoria do desenvolvimento e subdesenvolvimento.
Folha - Houve um formulador da chamada ``teoria da dependência"?
Faletto - Já havia um pensamento rigoroso sobre o desenvolvimento, Florestan Fernandes, por exemplo. Nada era um grande invento. Um detonador importante foi a política na América Latina, que era uma dimensão quente. Não era possível desprezá-la. Começamos então a trabalhar numa teoria geral, que nem era teoria. Era um problema, mas para teoria não dava. Teoria é Marx, Weber. E nas análises que fazíamos havia Weber, havia Marx, coisa de latino-americano, misturávamos tudo. Por que não? (risos). A ``teoria" foi um momento de convergência. Claro, saímos (Faletto e FHC) mais rápido do que os outros, o tema estava no ar e leva quem percebe primeiro (risos).
A situação do Chile influenciou muito. Todos os países latino-americanos estavam em uma situação muito convulsionada, Brasil, Peru, Argentina... O Chile parecia uma país onde as mudanças pareciam possíveis com estabilidade, com um sistema de partidos (risos). Então, intelectuais encontraram um país que não era a Suíça, não estava alheio à situação, mas era um ambiente onde a discussão era possível.
A existência da Cepal, o clima político que existia, favoreceu um diálogo de intelectuais latino-americanos, muito deles exilados.
Folha - Os militares criaram a teoria da dependência.
Faletto - É (risos). Também apareceu a idéia do latino-americano. A Revolução Cubana apareceu com muita força.
Folha - Os militares e Fidel.
Faletto - Isso! (risos)

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