São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Inércia subjuga drama familiar

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

"Atos e Omissões", em cartaz no novo teatro de Câmara de São Paulo, trata da violência urbana agravada por uma situação de desagregação familiar, isolamento individual e racismo.
O texto de Bosco Brasil mostra a situação de uma família brasileira, no momento em que Luis Daniel, o filho do casal, volta para o cubículo em que moram num conjunto habitacional da zona leste de São Paulo.
Luis Daniel passou cinco anos na Inglaterra tentando se dar bem. Não conseguiu nada. Traz junto a mulher, Leticia, com quem acabou de se casar. Ela não tem profissão. Cresceu fora do Brasil. Vende "objetos brasileiros".
No apartamento de dois quartos as últimas sobras de esperança da família se desfazem.
O pai, Hersilio, vivia de biscates. Agora está doente. Espera a morte. Não ouve, não é ouvido. A mãe, Élida, mantém intocado o quarto do filho menor, morto há cinco anos.
Uma sobrinha, de 35, vive ali agregada desde os 13, quando perdeu os pais. Faz serviços domésticos. Tem paixão por Luís Daniel.
Petronio, o melhor amigo de Luis Daniel, estudou, formou-se médico. Mas é negro.
Há um jovem criminoso, Zupo, sujeito limítrofe, que ronda a família com investidas selvagens. Ninguém tem qualquer perspectiva.
O tema da peça cheira a Nelson Rodrigues (o velho Hersilio solta frases do tipo "Parecemos mais velhos do que realmente somos"), mas fica muito aquém do dinamismo do autor de "Anjo Negro". Há um clima de morte anunciada, porém o desfecho, pífio, é eterna e tediosamente adiado.
As intenções, de abordar a violência, o incesto, a falência da família, o racismo, são as melhores possíveis. Emerge também o tema da violência libertadora, da morte que redime, presente nos textos incisivos do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès.
O beco-sem-saída familiar é sempre uma situação de muita força dramática, mas no caso serve apenas como suporte para um espetáculo flácido, evidência de que a moda de homenagens e reverências a Nelson Rodrigues está se transformando numa praga.
As cenas até que são curtas, as falas rápidas. Antes de indicar um ritmo atraente, esses recursos se sucedem em demasia, numa colagem de cenas indistintas, excessivas, que não chegam a constituir um espetáculo que atraia pela história em si ou pelo encadeamento das imagens.
Já se sabe que alguém vai morrer, que a família vai ser infeliz, que nenhum personagem tem qualquer chance. Aguarda-se alguma surpresa, que jamais acontece.
Na interpretação dos atores, especialmente dos habitantes originais da casa (o pai, a mãe e a adotiva), nota-se um esforço de fundar um novo tempo dramático que se quer mais significativo, através da lentidão das falas e da repetição dos assuntos nas conversas.
O tom desagradável, os silêncios, provocam aqui e ali a reflexão distanciada que o autor parece perseguir, mas à custa de grande sacrifício exigido até dos espectadores mais abnegados. A peça tenta provocar um grito libertador, mas é na verdade silenciosa, apesar das mais de duas horas de diálogos.
Há uma tentativa de aliviar esse clima cruel na maneira gozada com que Leticia, a mulher de Luis Daniel recém-chegada de Londres, fala trocando as palavras e engendrando coincidências (``Vou falar com você do modo mais subjetivo...adjetivo...objetivo!"). O recurso é usado em exagero e perde o efeito, também pela fragilidade da atriz Ariela Goldmann.
Merece nota a engenhosa cenografia de Luís Frúgoli. No espaço diminuto do Teatro de Câmara, ela funciona de maneira adequada. Divide bem o espaço e reforça a sensação de equilíbrio precário da trama.
Um espetáculo teatral é sempre composto por muitos detalhes que se interligam. Às vezes, modificações numa parte podem ser decisivas para o conjunto. No caso de "Atos e Omissões", um diretor não tão comprometido com o texto poderia talvez simplificá-lo em no mínimo meia hora, com boas chances de que o resultado final fosse mais eficaz.
Num ambiente teatral frequentemente alérgico a referência mesmo longínqua ao Brasil ou tímido diante de problemáticas atuais, é uma evidente ousadia falar de temas tão próximos como os de um médico negro discriminado, a ausência de esperanças para a classe média decadente, a falta de alternativas para o empobrecimento econômico geral, o desamparo das famílias pobres diante da rotina digna de Sarajevo instalada pela criminalidade nos subúrbios das grandes cidades.
Tudo que se pode esperar diante de quem traz esses temas diante de uma platéia é a oportunidade de contato com uma nova maneira de sentir e refletir sobre eles. Mas, desta vez, no choque entre ação e inércia presentes em cada peça, as Omissões superaram os Atos.

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