São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ébola é muito pior do que mostra o filme 'Epidemia'

JOSÉ LUIZ SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PRINCETON (EUA)

Ébola é muito pior do que mostra o filme 'Epidemia'
Há alguns anos, o escritor norte-americano Richard Preston estuda as chamadas "cadeias explosivas de transmissão letal". São epidemias de agentes ``quentes", como os vírus Ébola e Marburg, ambos da família dos filovírus.
As pesquisas de Preston estão em "The Hot Zone" (Random House, 1994, 299 páginas, US$ 23,00), livro-reportagem que há 33 semanas figura na lista norte-americana dos mais vendidos e até o final do ano deve ser publicado no país pela Nova Fronteira.
"The Hot Zone" descreve, em estilo fluente e cheio de suspense, embora sempre realista, as epidemias ocorridas entre 1967 e 1993, além do envolvimento dos cientistas com a identificação do vírus e o controle de suas amplificações.
Para escrever o livro, Preston visitou locais de epidemias e entrevistou cientistas do Instituto Médico de Pesquisas de Moléstias Infecciosas do Exército dos EUA.
Nele se encontra um dos principais laboratórios mundiais de biossegurança de nível quatro, onde se manipula os filovírus.
São laboratórios mantidos em pressão atmosférica negativa, para que o ar, no caso da abertura de uma fresta para o mundo exterior, seja aspirado, e assim não contamine o ambiente de contato.
Neles só se entra com a Chemturion -roupa espacial pressurizada, também conhecida como "blue suit" ("roupa azul"), por seu tom azul brilhante- e só se sai após um banho de descontaminação, feito à base de "EnviroChem", um líquido verde assassino de vírus.
Preston apresenta a idéia de que elas fazem parte de uma espécie de "controle natural de população", mecanismo pela qual a própria natureza se encarregaria, pela ação do vírus, de aniquilar partes ou mesmo o todo de uma espécie, que pode ser a humana.
Preston é também autor de "First Light", sobre astronomia, pelo qual recebeu o Prêmio do Instituto Americano de Física, e de "American Steel", sobre a Nucor Corporation e seu projeto de usina siderúrgica revolucionária.
Atualmente, ele é colaborador da revista "The New Yorker".
Abaixo, entrevista concedida por Preston à Folha em sua casa, situada em Princeton, Nova Jersey, pouco antes desta nova epidemia de Ébola em Kikwit, no Zaire.

Folha - Qual é a história de seu interesse pelas viroses emergentes?
Richard Preston - Eu me interessei bastante pelas viroses emergentes logo que comecei a ouvir os cientistas falarem delas.
A maioria das pessoas pensa que eles são um tipo de acidente artificial, que não acontecerá de novo. Mas de fato o que parece é que este é apenas o começo de um processo natural, extremamente perigoso, que consiste na emergência de viroses desconhecidas a partir de ecossistemas tropicais.
Folha - Então há semelhanças entre essas viroses e o vírus da Aids?
Preston - O vírus da Aids é um exemplo clássico de um vírus provavelmente originário de macacos das florestas equatoriais da África central, que, em algum ponto, deu um salto para outras espécies.
Não sabemos o que aconteceu depois. Não há uma única comunidade na Terra, não importa quão pequena ela seja, que não tenha sido infectada pelo vírus da Aids.
Foi uma amplificação global de um vírus da floresta. A partir de um ser humano infectado, o vírus da Aids ainda vai alcançar no mínimo 200 milhões de pessoas
Folha - Antes do Ébola, o senhor já se interessava pelo vírus da Aids?
Preston - Eu já estava muito interessado no vírus da Aids como a ponta de um iceberg, como parte de um fenômeno maior.
Foi quando os especialistas falaram-me sobre o vírus Ébola e dois deles mencionaram a temerosa epidemia ocorrida em Washington alguns anos atrás.
Folha - O que o senhor fez?
Preston - De imediato, telefonei para o Exército, e consegui permissão para entrevistar algumas das pessoas que estiveram envolvidas com a emergência.
Quando eu lhes disse que estava tomando notas para uma história, eles foram bastante receptivos.
Folha - Uma das principais qualidades de "The Hot Zone" é o modo como o senhor descreve a vulnerabilidade humana à ação dos vírus. É intencional?
Preston - Sim. Está cientificamente mostrado que nós somos tremendamente vulneráveis aos agentes biológicos.
As pessoas são infectadas o tempo todo por coisas como o vírus do resfriado e o da gripe.
Mas o perigo real vem das viroses do nível quatro. Qualquer um deles é letal para o ser humano, e poderia espalhar-se pelo mundo em cerca de seis semanas.
Isso é quanto leva o vírus da gripe para espalhar-se pelo mundo. Cada nova família desse vírus origina-se habitualmente na Ásia Central, e leva cerca de seis semanas para ir de Xangai a Bombaim, Paris, São Paulo e Nova York.
Folha - O senhor poderia comentar o modo como justifica sua tese segundo a qual a ruína da biosfera tropical seria a causa da emergência de novas viroses?
Preston - Sim, essa é a minha tese. Existem muitas coisas que propiciam essa ruína. Quando as pessoas se movem para as florestas equatoriais, elas com frequência entram em contato com muitas das formas de vida de lá.
Todas estas formas de vida podem carregar um vírus consigo. Há destruição de populações inteiras de animais, ao mesmo tempo em que outras populações experimentam explosões demográficas.
No meio desse desequilíbrio biológico, há alguma coisa que invade os hospedeiros, multiplica-se, "pula" para os seres humanos e assim se espalha.
Folha - Não há controle para isso?
Preston - Há casos de epidemia autolimitada, em que o vírus não se espalha. Mas permanece a possibilidade de um agente, como o Ébola, espalhar-se para fora da floresta equatorial.
Folha - As epidemias de viroses do nível quatro ocorrem em geral em florestas equatoriais situadas em países subdesenvolvidos. Se a emergência dessas viroses é causada por desequilíbrios na biosfera local e se esses desequilíbrios são gerados por pessoas que muitas vezes encontram na floresta seu único modo de subsistência, o problema das epidemias é eminentemente político. O senhor concorda?
Preston - Absolutamente. É muito simples tratar esse problema como meramente ecológico. Os ecossistemas tropicais são os grandes reservatórios mundiais de formas de vida e de viroses.
Todas estas explosões no número de pessoas provocam problemas tremendos para os sistemas econômicos locais. É difícil manter-se vivo. Cada vez nascem mais e mais pessoas.
A maioria da população é jovem, pobre e precisa de trabalho. Todos precisam ganhar a vida. E faz-se o que se pode para isso.
As pessoas que vivem nas áreas florestais fazem o que podem: cortam madeira na floresta, caçam animais selvagens ou exercem qualquer outra forma de exploração do ambiente natural.
Há assim cada vez mais eventos de contato entre as pessoas e os ecossistemas naturais. E há cada vez mais chance de contato entre os seres humanos e as viroses.
Folha - O que se pode fazer diante dessa situação?
Preston - Antes de mais nada, eu não suporto a idéia da destruição de populações inteiras, em especial da espécie humana.
Acho que o que pode e deve ser feito é o controle das viroses. A vigilância é algo bastante simples, mas não temos vigilância.
Se o vírus da Aids tivesse sido vigiado no início de sua explosão, ele talvez pudesse ter sido detido. Outra coisa a ser feita são vacinas, que são muito importantes.
Folha - Isso envolve investimentos.
Preston - Sim. A vigilância e as vacinas requerem compromisso e dinheiro dos países industrializados. Eles são os únicos que têm dinheiro e habilidade científica para fazer vacinas e sustentar um bom programa de vigilância.
Infelizmente, aqui nos EUA, o desenvolvimento de vacinas não está acontecendo. E não está acontecendo por razões políticas. É simples entender por quê. As corporações privadas que poderiam produzir a tecnologia necessária não o fazem nos casos em que o produto final não é rentável de imediato, como seria o caso da vacina contra o Ébola.
Nos EUA, nós temos os CDC (Centros para Controle e Prevenção de Doenças), que controla as infecções aqui. Eles fazem um bom trabalho e gostariam de vigiar doenças ao redor o mundo, mas não têm dinheiro para isso.
Folha - O senhor viu "Epidemia", o filme?
Preston - Sim. O filme segue o padrões de Hollywood. O conjunto é totalmente confuso. Eles deixam de lado informações sobre o próprio vírus em favor de perseguições de helicóptero.
O vírus do filme é supostamente muito pior que o Ébola, mas nada do que eu vi nele passa perto do que eu sei que o Ébola faz.
Folha - O que senhor espera de "The Hot Zone", o filme?
Preston - Até minhas últimas férias, eu estava esperançoso de que o filme seria feito. Não acredito que a 20th Century Fox tenha força para fazer "Hot Zone" agora. A Warner saiu na frente, fez "Epidemia" em um mês e roubou o sucesso do "Hot Zone".

Texto Anterior: HORMÔNIO; ARTIFICIAL; MÃES JOVENS
Próximo Texto: Não se conhece origem ou cura para o vírus
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.