São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Arma biológica foge do controle internacional

ROBERT WRIGHT
DA "THE NEW REPUBLIC

Depois que você assimila a idéia de que uma seita ``new age" apocalíptica com filiais em três continentes estocou toneladas de ingredientes de gás de nervos e estava tentando cultivar a toxina bacteriana que provoca o botulismo, o resto da história pode ser entendida como boa notícia.
Em vez de realizar atentados a gás sincronizados nos metrôs de Tóquio, Nova York e Moscou, a seita em questão, Aum Shinrikyo (Ensinamento da Verdade), aplicou seu gás de nervos em apenas um dos continentes onde tem filiais.
Apenas uma pequena fração de seus estoques químicos foram usados e, além disso, foram mal preparados; o gás parece ter sido uma versão degradada do sarin, e os ``sistemas de entrega" que o emitiram mal mereciam esse nome.
Em lugar de milhares de mortos em três continentes, tivemos 12 mortos num continente só. Em outras palavras: um final feliz.
Por outro lado, uma demonstração de terrorismo químico e biológico bem administrado, em nível mundial, teria tido algumas vantagens. Entre meados de abril e meados de maio, na véspera da expiração do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, aos 25 anos de vigência, representantes de mais de 170 nações se reuniram em Nova York para votar a renovação do tratado.
Seria possível imaginar que esse evento fosse capaz de inspirar um diálogo mais amplo, e necessário, sobre a situação dos esforços mundiais para controlar armas de destruição de massa, entre elas as armas químicas e biológicas.
Até agora, as tentativas de olhar esta questão sob um prisma realmente novo têm se chocado com uma espécie de inércia entre os círculos políticos decisórios. É o tipo de condição para a qual 10 mil mortes mundialmente televisionadas em três continentes talvez funcionasse como a cura exata.
Um aspecto que chama a atenção na abordagem que o mundo faz às armas de destruição em massa é sua perversidade. O Tratado de Não-Proliferação Nuclear, ou TNP, é um documento muito menos incisivo do que a recém-negociada Convenção sobre Armas Químicas, que aguarda ser ratificada pelos EUA; no entanto, as armas nucleares são muito mais devastadoras do que as químicas.
Enquanto isso, as armas biológicas praticamente não estão sujeitas a controles internacionais -mas são as mais assustadoras das três. Podem não ser as mais potentes -pelo menos não por enquanto- mas são as que possuem a maior combinação de potência e viabilidade de uso.
Se alguém pedir para adivinhar qual tecnologia pode vir a ser a primeira a matar 100 mil norte-americanos num atentado terrorista, não hesite: aposte na biotecnologia. E não estamos falando em vírus futuristas, genocidas, geneticamente criados, embora esses possam vir a surgir.
As velhas e simples armas biológicas de primeira geração -as mesmas já conhecidas que a Aum Shinrikyo tentava fabricar- constituem a grande ameaça não anunciada à segurança nacional do final dos anos 90.
Em suma, a política hoje adotada em nível mundial em relação às armas de destruição em massa pode ser resumida nas seguintes palavras: quanto mais terrível e ameaçadora a arma, menos fazemos a respeito. Nunca houve um momento mais oportuno para se repensar essas prioridades.
É preciso dizer que a administração Clinton trabalhou arduamente em prol da renovação do TNP. Seus representantes viajaram pelo mundo afora, fazendo os dirigentes mundiais lembrarem que têm mais segurança com o tratado do que sem ele, e prometendo aos mais ambivalentes só Deus sabe o quê em troca de seu apoio.
Por isso, o tratado acabou sendo prorrogado.
Com certeza, foi melhor prorrogá-lo. Apesar disso, porém, desde que o tratado foi concebido, na década de 60, seu ponto fraco estrutural já se tornou tão evidente que nos inspira o desejo inútil de que essas duas opções -prorrogá-lo ou não- não fossem as únicas.
A idéia por trás do tratado era que as potências nucleares -Reino Unido, China, França, Rússia e Estados Unidos- pagariam para impedir que as outras atingissem o mesmo status que elas.
Os países não detentores de tecnologia nuclear se comprometeriam a não adquirir armas nucleares, e as potências nucleares os ajudariam a conseguir e conservar energia nuclear para fins pacíficos. Esse era o atrativo.
Uma vez que os países não-nuclearizados tivessem assinado o tratado, passariam a ser sujeitos a restrições (eles e todos os outros países também): inspeção internacional de seus reatores nucleares, com a condição previamente aceita de que se, fosse constatado que a tecnologia estava sendo usada para fins militares, ela seria cortada.
Quem administra tanto o atrativo quanto as restrições é a Agência Internacional de Energia Atômica, ou AIEA.
Um aspecto estranho desse arranjo é que a AIEA acaba trabalhando para complicar sua própria vida cada vez mais. À medida que ajuda a espalhar materiais nucleares ``pacíficos" pelo mundo afora, multiplicam-se as oportunidades de uso ilícito desses mesmos materiais, com o consequente aumento da necessidade de policiamento.
Assim, o mundo é obrigado a aperfeiçoar-se cada vez mais em dois quesitos: detectar os países que estão fraudando o acordo, e impor a eles um castigo suficientemente grande para impedir que outros países sigam o mesmo caminho.
Quando a Guerra do Golfo começou, o Iraque era um país que assinava o TNP, em situação razoavelmente boa. Depois da guerra o mundo descobriu que esse fato pode não significar nada. De fato, como que para mostrar a todos a impotência da AIEA, uma agência diferente, sob os auspícios da ONU, entrou no Iraque, documentou seu programa de armas nucleares e o desmontou.
É verdade que a existência desse programa não constitui surpresa total. Graves suspeitas existiam havia bastante tempo, mas a aversão sentida pelo presidente George Bush à hegemonia regional iraniana o munira de certa tolerância em relação aos excessos iraquianos.
Apesar disso, poucos desconfiavam da abrangência do programa nuclear de Saddam Hussein, ou da sutileza com que estava escondido. Hussein provou que o regime de inspeção da AIEA (restrito a pontos nucleares declarados como tais) é inadequado.
A lição foi aplicada pela primeira vez na Coréia do Norte. Quando a inspeção de um local declarado revelou que faltavam materiais nucleares, a AIEA, pela primeira vez em sua história, pediu para examinar um local não-declarado.
A recusa norte-coreana confirmou as piores desconfianças de todos, e desse modo revelou uma segunda deficiência do TNP: depois que o mundo fica sabendo que algo suspeito está acontecendo, não existem medidas punitivas efetivas previstas.
Teoricamente, a AIEA poderia apelar para o Conselho de Segurança da ONU, pedindo sanções econômicas -ou até mesmo a autorização de ataques aéreos contra as instalações que são objeto de suspeita. Mas este canal é frequentemente bloqueado pelo veto dos cinco grandes -possivelmente da China, no caso da Coréia do Norte, talvez o da Rússia em alguma questão futura envolvendo o Irã.
É claro que a AIEA poderia interromper todos os envios posteriores de materiais nucleares, para excluir algumas nações.
Mas talvez já esteja tarde para impedir que adquiram a bomba por esses meios, e quaisquer efeitos adversos sobre seu fornecimento de energia só serão sentidos mais tarde.
Apesar dessas falhas, o TNP tem funcionado bastante bem. Ninguém chamou John Kennedy de histérico quando, em 1963, ele previu que 12 anos depois entre 15 e 20 países do mundo possuiriam a bomba atômica.
Mas agora, 32 anos mais tarde, a melhor aposta é que oito nações possuam uma bomba em funcionamento -as cinco grandes subscritoras do TNP e, fora do tratado, Israel, Paquistão e Índia. (Além desses países, Ucrânia, Belarus e Cazaquistão nasceram já possuindo a bomba e afirmam que vão desfazer-se dela.)
Uma razão primordial desta difusão lenta é que o TNP, em grandes regiões do mundo, dissipou os temores sobre a iminente nuclearização de países vizinhos.
Existe um bom modelo de reforma na Convenção sobre as Armas Químicas (CAQ), que hoje, após mais de uma década de negociações envolvendo três diferentes governos norte-americanos, aguarda sua ratificação pelo Senado.
A CAQ possui o que falta ao TNP: um regime rigoroso de inspeções e punições pesadas para casos de violação.
Segundo Barry Kellman, professor de direito da Universidade DePaul, a CAQ, no campo do controle de armamentos, é ``um documento inteiramente inusitado de direito internacional". Se já estivesse em vigor, a seita Aum teria encontrado bem mais dificuldade em fabricar armas químicas.
Sob a convenção que rege as armas químicas, a Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq) seria informada, como rotina, sobre a transferência comercial de substâncias utilizadas na fabricação dessas armas e de substâncias usadas para produzir outras que ajudem a produzir armas químicas).
Isso cobre dezenas de substâncias. Também cobre muitos compradores e vendedores, porque essas substâncias costumam ser usadas também para fins legítimos.
O thiodiglicol é usado tanto para produzir gás mostarda como para produzir tinta de canetas esferográficas. A dimetalamina é usada na produção de gás de nervos e também de detergente.
Os negociadores da CAQ conseguiram criar um sistema que: a) monitora a venda e transporte dessas substâncias e prevê inspeções periódicas, e b) conta com o apoio inequívoco da Associação de Indústrias Químicas.
Diferentemente do TNP, a CAQ vai muito além da inspeção de locais ``declarados" (fábricas que reconhecidamente fazem uso das substâncias químicas suspeitas) e prevê, explicitamente, a inspeção de locais não-declarados.
E é aqui que as coisas podem acontecer rapidamente. Se os EUA requerem uma ``inspeção não-rotineira" num depósito de aparência suspeita, por exemplo, no Irã (país signatário da convenção), o Irã precisa permitir a entrada dos inspetores no país 12 horas depois de receber a notificação.
Em outras 12 horas, precisa ter acompanhado os inspetores até a entrada do armazém. Considera-se pouco provável que pudessem ser eliminados todos os vestígios de manufatura de armas químicas em um prazo de 24 horas.
Neste ponto, pode haver até 96 horas de negociações sobre quais partes do depósito estariam sujeitas à inspeção. Mas quaisquer veículos que deixam a área nesse ínterim podem ser revistados.

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