São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Narcotráfico busca imagem empresarial

JORGE CASTAÑEDA

Atuação política e econômica no comércio de entorpecentes muda o papel do traficante latino-americano

O narcotráfico na América Latina não data de ontem. Suas origens e seus estragos remontam a tempos longínquos, quando ainda subsistiam no continente esperanças de cultivar, produzir e exportar outras mercadorias, igualmente lucrativas porém menos nocivas, e quando o tema ocupava um lugar secundário na agenda dos EUA.
Mas a antiguidade do assunto não impede que ele evolua e atinja novas configurações e magnitudes, que podem mostrar-se tão surpreendentes, hoje, quanto foi, ontem, o paulatino desaparecimento das esperanças anteriormente mencionadas.
Há três mudanças dignas de serem destacadas aqui.
A primeira mudança talvez possa ser distinguida mais claramente no México, mas abarca muitos outros países da América Latina.
No México a imagem clássica do narcotraficante havia se tornado emblemática, como também, em grande medida, na Colômbia.
Os narcotraficantes do cartel do Pacífico e de Juarez eram jovens, meio lúmpens, com pulseiras e correntes de ouro, anéis de brilhantes e uma mistura assustadora de audácia e desejo de morte.
Mas esse retrato falado rapidamente perdeu atualidade, pelo menos no que diz respeito a sua substância.
Hoje os traficantes são empresários modernos e sofisticados que se dedicam a um negócio altamente lucrativo, que alguns consideram ilícito.
Existem razões para supor que os narcotraficantes participaram do processo de privatizações mexicanas e de outros países, já não apenas para lavar dinheiro, senão para investir seu capital em negócios que, somados aos seus, geravam sinergias interessantes.
É muito possível que até o final do ano passado tenham negociado, tácita ou explicitamente, formas de apoio à divisa mexicana, como também muito possivelmente o tenham feito no início do mandato de Carlos Salinas de Gortari.
Provavelmente tiveram alguma ingerência no assassinato ou do cardeal de Guadalajara, Juan José Posadas, ou de Luis Donaldo Colosio, ou de José Francisco Ruiz Massieu, ou em alguma combinação dos três.
Uma segunda transformação vinha sendo vislumbrada há algum tempo na Colômbia, com o declínio do cartel de Medellín e a ascensão do cartel de Cali.
Depois da terrível guerra travada pelo Estado colombiano contra o narcotráfico na pessoa de Pablo Escobar e dos demais caciques de Medellín durante os anos 80 e início dos 90, a sociedade e o governo colombianos claramente preferiam construir um entendimento com uma esfera da atividade econômica demasiado importante para ser vencida ou ignorada.
Menos tendente à violência, disposto a levar em conta as sensibilidades dos Estados Unidos e a necessidade de o governo colombiano de entender-se com Washington, disposto a enviar seus filhos para estudar em universidades norte-americanas e a conduzir suas atividades com seriedade e eficiência, sem excessos nem repentes, o cartel de Cali clamava alto por uma negociação.
O tipo de concessões, de tolerância, as maneiras de fazer vista grossa diante das flagrantes violações da lei que caracterizam a postura das autoridades norte-americanas diante do consumo, comércio e cultivo de entorpecentes em seu próprio país, passa a ser condenado pela DEA (Drug Enforcement Administration, o órgão responsável pela repressão ao narcotráfico nos EUA), o FBI (polícia federal norte-americana) e a Direção de Alfândega, quando se trata de outros países.
As infiltrações da DEA dirigidas contra o governo do Partido Liberal na Colômbia, e contra outros governos em outras latitudes do continente, dificultam enormemente uma tarefa imprescindível: levar em conta a aspiração dos narcotraficantes latino-americanos de serem considerados parte das elites empresariais da região, mais produtivos e eficientes do que muitos, embora menos apresentáveis na sociedade do que outros.
Isto nos leva à terceira mudança, que na realidade se traduz em um dilema para os EUA.
Nos últimos dez anos o narcotráfico adquiriu dimensões insuspeitadas na América Latina, em grande medida como resultado da estagnação econômica e das políticas de desregulamentação e de liberalização comercial.
Era de se esperar: um dos setores em que as economias latino-americanas efetivamente gozam de vantagens comparativas é a produção e exportação de entorpecentes, por razões climáticas, jurídicas e históricas. E muitos dos governos do hemisfério que Washington oferece como exemplos de fervor pelo livre mercado e a vocação democrática são também aqueles que teceram as redes e cumplicidades mais estreitas com o narcotráfico, às vezes com o intuito de enriquecimento pessoal, mas em outras ocasiões com fins institucionais.
O que Washington deve fazer? Fingir que ignora o crescente vínculo com o narcotráfico, para não prejudicar ou contribuir para derrubar governos amigos, como fez durante seis anos com o regime de Carlos Salinas de Gortari no México? Ou, justamente devido a suas ligações com os narcotraficantes, acusar e, em seu caso, enfraquecer governos que sob outros aspectos merecem sua simpatia, como pareceria ser a atitude adotada pelos Estados Unidos em relação à Colômbia, hoje?
Como se vê, o problema está presente por toda parte, e não são apenas os latino-americanos que enfrentam opções difíceis neste tema, o mais espinhoso de todos os que constituem a realidade da América Latina.

Tradução de Clara Allain

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