São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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A universidade brasileira e a pesquisa

FLÁVIO FAVA DE MORAES; HUGO A. ARMELIN

É justo comparar nossas universidades às do Primeiro Mundo através dos mesmos parâmetros?
A autonomia financeira da universidade é é essencial para manter o bom desempenho
FLÁVIO FAVA DE MORAES e HUGO A. ARMELIN
A grande e contínua preocupação com a busca de formas confiáveis para avaliar desempenho de professores e de universidades é saudável e oportuna. A lista dos produtivos da Folha do último domingo veicula uma forma de avaliação da qualidade e da produtividade da pesquisa largamente usada para medir a competitividade da produção científica entre as universidades de pesquisa dos países do Primeiro Mundo. Antes de entrar no mérito e nas limitações dessa forma de avaliação, cabe relembrar alguns fatos históricos pertinentes.
Nos primórdios da revolução industrial, passando por todo o século passado e décadas deste, a ciência e a tecnologia se desenvolveram com grande independência uma da outra, inclusive sediadas em instituições diferentes, regidas cada uma por cultura própria. A pesquisa científica ou pesquisa básica era cultivada nas universidades, enquanto o desenvolvimento tecnológico tinha lugar na própria indústria.
Nesse largo período histórico, nos países centrais, havia um ciclo virtuoso de inovação relacionando a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico, que não iria se repetir nos países periféricos de industrialização tardia. A pesquisa científica de um lado, e, desenvolvimento tecnológico de outro, realimentavam-se mutuamente, levando ao crescimento, ao progresso e à riqueza. Nos países periféricos, a inexistência desse ciclo de auto-realimentação é o que caracterizou a dependência científica e tecnológica clássica.
A crença popularizada de que a fronteira sem fim da ciência é uma fonte inesgotável de inovação tecnológica, criou, neste século, condições na Europa Ocidental e, principalmente, na América do Norte, para que se fizesse um colossal investimento na pesquisa científica. Basta lembrar um exemplo bem conhecido: os fundos dos institutos nacionais de saúde dos EUA, distribuídos competitivamente para projetos de pesquisa de todo o país, cresceram de US$ 26 milhões a US$ 4 bilhões, no período de 1945 a 1965, portanto uma assombrosa taxa de crescimento real: 28% ao ano.
Esse fato levou à transformação de algumas antigas universidades num modelo singular de instituição: a universidade de pesquisa. Nos EUA, Harvard, MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Yale, Stanford, UC-Berkeley são exemplos notórios do grupo das pouco mais de 150 universidades de pesquisa norte-americanas, que representam menos de 5% do total de universidades daquele país.
As indústrias de ponta da Route 128 que se desenvolveram em torno do MIT e as que brotaram no Silicon Valley nas proximidades de Stanford são demonstrações mitológicas e impactantes do poder de transformação sociocultural e crescimento econômico das universidades de pesquisa.
Toda essa evolução histórica envolveu, necessariamente, a combinação de alguns fatores como grande disponibilidade de recursos financeiros, investimentos de longa maturação, instituições estáveis e independentes, projetos estratégicos com prioridades bem definidas, e o incentivo à ação empreendedora e criativa tanto do cientista como do inventor.
Todos esses fatores parecem ausentes e muito distantes da realidade objetiva e da cultura de países do hemisfério Sul, em particular dos sul-americanos. Embora esta última percepção seja absolutamente correta cabe destacar que nos últimos 60 anos uma sequência aparentemente improvável de eventos históricos ocorreu, principalmente no Estado de São Paulo que levou à construção de um modelo brasileiro de universidade de pesquisa.
Em 1934 foi criada a Universidade de São Paulo (USP) para ser uma universidade com pesquisa. Poucos anos depois instituiu-se o regime de trabalho de dedicação exclusiva à pesquisa, profissionalizando-se o docente-pesquisador. Por essa época, uma comunidade científica ainda incipiente fundou a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). O campus uspiano de Ribeirão Preto, através da Faculdade de Medicina, e um pouco depois, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) foram fundadas seguindo os padrões da criação da USP. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foi instituída como agência de amparo à pesquisa, com autonomia financeira e administração privativa, e por mais de 30 anos vem atuando exemplarmente.
A criação do sistema nacional de pós-graduação, aos poucos, literalmente, inundou a academia com bolsistas de mestrado e doutorado. Consolidaram-se também, nessa mesma linha de qualidade, no Estado de São Paulo, duas universidades federais. Desde 1989, as universidades estaduais paulistas conquistaram a autonomia financeira através de uma quota parte no ICMS do Estado.
No conjunto, essa sequência histórica de atos e iniciativas convergiu para a concentração no Estado de São Paulo de um grupo de universidades com vocação para a pesquisa. Essas universidades, produto de uma evolução histórica singular, são, presentemente, objeto de múltiplas avaliações dada a sua importância como referencial para o futuro da pesquisa e do ensino superior no Brasil.
As questões de maior interesse a ser avaliadas são: nossas universidades possuem capacidade própria para produzir competitividade, conhecimento científico e inovação tecnológica? É útil compará-las, quanto ao desempenho, às grandes universidades de pesquisa norte-americanas e européias através dos mesmos parâmetros? Como?
A Folha usou como parâmetro de avaliação o índice de citações das publicações em periódicos indexados pelo ``Institute for Scientific Information" (ISI) e através desses valores numéricos hierarquizou professores e instituições que merecem todos os elogios. Os dados divulgados pelo jornal são objetivos e, certamente, muito informativos, mas ressalvas importantes precisam ser feitas.
O índice de citações indica como os especialistas percebem a relevância das informações de um artigo. Centenas de citações indicam que uma fração importante dos pesquisadores da área pertinente considera que as informações publicadas não são triviais. Total ausência de citações, caso de mais de 60% das publicações, demonstra que os especialistas não vêem novidade relevante no artigo publicado, o que não significa que os resultados estejam errados ou a pesquisa mal feita.
O número e a evolução das citações depende da natureza do artigo, se é um relato de resultados ou a descrição de uma nova metodologia. Na maior parte das vezes os artigos são citados apenas por alguns anos após a publicação. A razão disso é que os resultados novos que divulgam são informações importantes sobre os rumos da pesquisa na fronteira do conhecimento, mas não são por si só conhecimento estabelecido.
É por tudo isso que o ISI adota como índice de impacto o número de citações acumulado nos primeiros dois anos após a publicação, que é uma escolha arbitrária, mas útil para certos fins, principalmente na análise de dados agregados sobre desempenho de instituições e revistas científicas.
Por outro lado, o número de citações de artigos igualmente relevantes podem ser muito díspares se pertencerem a áreas do conhecimento diferentes. Artigos importantes em bioquímica ou imunologia recebem centenas de citações, enquanto em engenharia civil mal chegam a uma centena. Portanto, a hierarquização de pesquisadores de áreas diferentes exclusivamente pelo valor numérico de seus respectivos índices de citação é ingênuo. É comum adotar-se valores ponderados para comparar índices de citação em áreas diferentes.
Não há dúvidas que o índice de citações, quando usado adequadamente, é um ótimo indicador para saber se um pesquisador trabalha na fronteira do conhecimento e produz resultados inovativos. Além disso, a análise das citações agregadas de uma universidade permite detectar com precisão em quais áreas do conhecimento essa instituição é competitiva em pesquisa.
O exame dos dados publicados pela Folha revela informações importantes que merecem destaque. Artigos com cem a 150 citações nos primeiros dois anos e centenas de citações nos dez anos após a publicação são indicadores de alto desempenho em qualquer universidade do mundo.
A lista dos mais citados mostra professores com dezenas de publicações e centenas de citações ao lado de ex-alunos também em posição de relevo. Esses fatos mostram a existência de universidades brasileiras, que, como a USP, possuem quadros de professores que há décadas conduzem programas de pesquisa coerentes e produtivos, formando escolas que multiplicam pesquisadores da mais alta qualidade.
Universidades dessa natureza, necessariamente, precisam dispor de uma ampla infra-estrutura: laboratórios, instalações e equipamentos de acordo com o estado da arte, bibliotecas ricas e atualizadas, redes informatizadas e computadores de alto desempenho, oficinas de serviço e desenvolvimento instrumental, serviços técnico-administrativos de bom padrão profissional, carteira de projetos organizada para captação de recursos extra-orçamentários. São organizações inseridas no contexto internacional e cuja sobrevivência depende da eficiência com que desenvolvem projetos competitivos e produtivos, tratam-se, portanto, de complexas universidades de pesquisa.
Os dados do jornal, além de mostrar concentração geográfica de competência, mostram também concentração em certas áreas do conhecimento. A lista dos pesquisadores mais citados está dominada pelas áreas de biomédicas, física e química. Estando praticamente ausentes representantes das outras áreas.
As razões para as ausências podem ser uma distorção devido a níveis diferentes nos valores dos índices de citação entre áreas diferentes do conhecimento, mas podem existir outras razões também.
A tabela de índices médios de citação por área esconde uma informação importante. Áreas como história, filosofia, linguística, sociologia e política envolvem um número muito baixo de publicações nesse banco de dados quando comparados à física, bioquímica e biofísica celular. Em outras palavras, esse banco de dados não parece ser suficiente para uma análise de desempenho das ciências humanas e sociais.
Em conclusão, décadas de desenvolvimento levaram à construção exitosa, principalmente no Estado de São Paulo, de universidades com pesquisa de padrão internacional, mas cujo progresso depende ainda de grandes mudanças estruturais.
Em particular, as universidades estaduais paulistas enfrentam desafios em duas frentes diferentes. Primeiro, no meio interno as reivindicações sindicais corporativas precisam de mecanismos auto-regulatórios que permitam a administração dos conflitos sem comprometer o desempenho acadêmico das instituições. Segundo, pelo lado externo, o Estado precisa compreender que a atual autonomia financeira da universidade é essencial para manter o bom desempenho didático-científico de uma universidade e, portanto, do desenvolvimento e da soberania da nação.

FLÁVIO FAVA DE MORAES, 57, é reitor da Universidade de São Paulo, professor titular e ex-diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (1982-86). Foi diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) de 1986 a 93.

HUGO AGUIRRE ARMELIN, 55, é pró-reitor de Pesquisa da Universidade de São Paulo, professor titular e ex-diretor do Instituto de Química da USP (1990-94).

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