São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mostra revê o pessimismo de Fassbinder

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

No dia em que o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder completaria 50 anos uma mostra com 15 filmes traz de volta o poder corrosivo de sua visão da Alemanha pós-Segunda Guerra e permite reavaliar uma obra de gênio.
Companheiro de geração de diretores como Wim Wenders, Werner Herzog, Volker Schlõndorff e Werner Schroeter, Fassbinder escapou da decadência que corrói os filmes recentes de seus colegas por meio de uma overdose de cocaína, que lhe tirou a vida em 10 de junho de 1982, aos 37 anos.
Mesmo limitada a pouco mais de um terço da obra -42 filmes feitos ao longo de 15 anos-, a mostra que começa nesta quarta-feira na sala Cinemateca reúne trabalhos pouco conhecidos (como ``O Amor é Mais Frio Que a Morte", seu filme de estréia, em 1969), outros de grande sucesso (``O Casamento de Maria Braun" e ``Querelle"), além do lançamento do inédito ``Martha", de 1973.
Este conjunto funciona, literalmente, como uma retrospectiva. Ressalta o vigor estético e político do diretor e faz brilhar à distância suas qualidades intactas, longe da aura de escândalo que acompanhou sua construção.
A idéia de painel histórico se ajusta bem ao projeto de Fassbinder. Num olhar geral o que se vê é uma compreensão pessimista ao extremo da sociedade alemã surgida a partir da reconstrução que seguiu ao desastre nazista.
O crítico francês Serge Daney observou sobre ``O Desespero de Veronika Voss" (infelizmente ausente do ciclo): ``Antes de Fassbinder, a Alemanha colocou para si apenas esta questão: como pudemos viver com essa coisa, a besta imunda. Depois de Fassbinder, a questão passou a ser: como pudemos esquecer tão facilmente?"
Esse trabalho de luto, não mais do nazismo, mas do ``milagre da reconstrução", é o projeto do diretor. Trata-se de fazer vir à tona todos os recalques que aniquilaram, no projeto coletivo, as possibilidades de felicidade individual. De fazer do cinema, num golpe de gênio, o veículo ideal para uma memória que luta contra a extinção.
Os filmes de Fassbinder que têm panos de fundo históricos (nazismo em ``O Casamento de Maria Braun" e ``Lili Marlene", o período da reconstrução por Adenauer em ``Lola", o terrorismo dos Baader-Meinhof em ``A Terceira Geração") são a face visível de seu plano. Mas é quando atua a favor do presente que ele mostra os efeitos perversos das raízes.
A vida remediada do Sr R. não o impede de sucumbir à loucura assassina. O luxo e sofisticação em que Petra Von Kant vive não a poupam de ter de pagar para obter o amor de Karin. A devotada paixão de Erwin/Elvira em ``Num Ano Com Treze Luas" também converte seu corpo de objeto de amor em objeto de prostituição.
E no momento que a ascensão social criada pela reconstrução tenta vender a posse do paraíso, boom!, o mundo voa pelos ares ao simples acender de um cigarro, como Maria Braun aprende num dos mais belos finais do cinema.
Com seus planos cerrados e sem usar o recurso da profundidade, Fassbinder acentua a impressão de um mundo do qual as fugas e deslocamentos não passam de utopia.
Outra constante em seus filmes é o uso de espelhos, menos como ponto de exata reflexão que como lugar onde se reflete a deformação. Eles abundam nos jogos com os falsos duplos que acompanham os personagens centrais de ``Despair" e ``Querelle". Uma duplicidade que confirma a temática homossexual da obra, mas não se limita a ela. Antes confirma sua intenção de dar a ver todos os fantasmas em todas as formas.
Desse pessimismo será possível encontrar alguma saída? No amor, talvez, segundo a crença que move as vítimas dos seus melodramas. Mas, como já estava inscrito no título que dá início à obra, ``O Amor É Mais Frio Que a Morte".
Ao longo de 42 filmes, a saída continua vetada. ``Querelle" dá o ponto final, com o verso de Oscar Wilde que a personagem de Jeanne Moreau canta: ``Each man kills the things he loves" (Todo homem mata aquilo que ama)...

Texto Anterior: Portugal reúne 80 poetas em evento mundial
Próximo Texto: PROGRAMAÇÃO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.