São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 1995
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Terra da vida, não dos homens

AUGUSTO MARZAGÃO

``Meu corpo, minha terra! Como se pode pensar em ti, a coisa mais íntima e a mais estrangeira?"
Paul Valery

Preocupado, como tantos, consultei alguns especialistas sobre a incidência do vírus Ébola em países da África, especialmente o Zaire, Sudão e Quênia. O quadro inquietante tem chamado a atenção de cientistas e autoridades sanitárias do mundo inteiro, alarmados com os riscos do alastramento de uma epidemia em escala planetária.
Ganha corpo a tese de que o aparecimento de vírus letais, como o Ébola, esteja diretamente relacionado com a devastação de grandes áreas florestais. E não se descarta a probabilidade de que o novo e fulminante agente epidêmico seja capaz até mesmo de extinguir a raça humana.
O curioso é que a eventualidade do desaparecimento da raça humana (e não da vida), em decorrência das agressões que ela promove contra o meio ambiente, é aventada no momento em que angaria o respeito do mundo científico a chamada ``hipótese Gaia" -em homenagem à deusa da mitologia grega que simboliza a Terra- formulada pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margolis, no seu livro ``A New Look of Life on Earth".
Pensar o nosso planeta como um organismo vivo, dotado de mecanismos de auto-regulação, pareceria, em passado não muito distante, um completo delírio, fora do alcance e do interesse de qualquer interpelação científica.
O respaldo de luminares como Gregory Bateson e William Irwin Thompson, entre outros, sem falar na crescente difusão internacional dessa tese dão à hipótese Gaia uma respeitabilidade à qual em breve não serão mais refratários os governos da maioria das nações ditas civilizadas.
Lovelock defende, além de outros postulados, o de que a terra, ``longe de ter sido feita como é, para que pudesse ser habitada, tornou-se o que é através do processo de sua habilitação. Em resumo, a vida tem sido o meio, não a finalidade do desenvolvimento da terra".
Nesse sentido o ar, por exemplo, não constitui apenas um meio ambiente para a vida, mas também uma parte da própria vida. A Terra seria, pois, bem mais do que uma grande massa de água e rochas, onde a vida, em função da combinação aleatória de elementos germinativos, teria aparecido, mas uma entidade abrangendo todo o planeta, dotada de poderosa capacidade de regular o seu clima e a sua composição química. Gaia assume o nome do sistema responsável pela manutenção do equilíbrio do planeta.
Há evidências termodinâmicas para demonstrar essa teoria, como por exemplo, a interação do oxigênio e do metano, que mantém inalterado ao longo de milhões de anos -apesar do aquecimento progressivo constante- a concentração de oxigênio da atmosfera girando em torno de 21%, condição essencial para a sobrevivência de inúmeras espécies, inclusive a nossa.
A vida na terra -ou o sistema Gaia- depois de instalada, já suportou incontáveis impactos quase exterminatórios de pequenos planetas ou outros corpos celestes que, a cada 100 milhões de anos, promovem uma devastação equivalente à provocada pelo lançamento de dezenas de bombas atômicas por quilômetro quadrado da superfície terrestre.
Admite-se que há 65 milhões de anos um impacto dessa natureza haja causado a extinção de cerca de 60% de todas as espécies então ativas e estimulado, ao mesmo tempo, o surgimento de outras formas de vida.
Consideram portanto esses estudiosos que a vida na Terra -ou Gaia- nada tem de frágil -como pretendem certos círculos ambientalistas- em razão de sua fantástica capacidade de adaptação, pois no mesmo momento em que inviabiliza determinadas espécies, como os dinossauros, enseja o aparecimento de sucedâneas, como os homens. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera, por exemplo, pode dar lugar a uma auto-ordenação do sistema que, ocasionalmente ou provavelmente, dispensará a ``contribuição" do gênero humano.
A hipótese Gaia não vale de modo algum como autorização para poluir, ao postular a capacidade de realimentação do sistema Gaia. Como diz com muita felicidade Lovelock, a vida no planeta não é a donzela desamparada que o ambientalista esperava regular, mas uma mãe canibal saudável e robusta. E ``nós estamos a ponto de ser devorados, pois é costume de Gaia devorar seus filhos".
Durante duas eras (2 milhares de milhões de anos), a biosfera do nosso planeta foi representada por cianoficeas, uma simples bactéria, demonstrativo bastante de que a vida é muito mais do que o universo dos seres humanos ou de espécimes vegetais raros e belos. A infra-estrutura, cuja existência se observa na escala de milhões de anos, muito embora menos atraente, é fundamental e decisiva.
Significa dizer que a vida no planeta continuará, com o gênero humano, caso respeite sua homeostase da presente era, ou sem ele, na opção de insistirmos em levar adiante a faina suicida de romper os equilíbrios atuais, precipitando um realinhamento de fatores climáticos que suprima grande parte das espécies existentes e promova o advento de uma nova gama de seres vivos, mais adaptados aos tempos de Aquarius.
O papel de controle do crescimento demográfico, desempenhado no passado pelas grandes epidemias, pode dar lugar a uma outra forma de controle das espécies presentes na face do globo, visando não à preservação do gênero humano, mas a preservação mesma da vida, que, a seguir tal lógica, tem valor superior ao de uma espécie que teimosamente trabalha contra sua própria duração.
O vírus do Ébola inscreve-se -porém, de forma mais evidente e dramática- no mesmo registro do aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera, da redução da camada de ozônio e do aquecimento da temperatura do planeta, enquanto processos disparados na origem pelo homem podem, a um prazo não muito longo, comprometer as condições que determinaram seu surgimento e evolução.
Se o ser humano conspira contra o próprio útero terrestre, enquanto a vida como um todo permanece em seu redor, terá um dia talvez de conformar-se com o seu destino de passagem, de ator acidental no cenário mutante, mas eterno, dentro do qual se movimenta sem saber sequer em que direção.

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