São Paulo, quinta-feira, 1 de junho de 1995
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Cativeiro gay

OTAVIO FRIAS FILHO

O ``Painel" informa que até em rodas nordestinas do PFL, o partido do futuro, o assunto é especular se Zumbi era homossexual ou não. Parece que os movimentos negros, que sempre tiveram presença fraca e inarticulada entre nós, correm o risco de serem roubados até no seu maior símbolo.
Essa transferência reflete a desproporção entre a militância gay, influente nos meios culturais, e um ativismo negro que de ativismo só tem, até agora, o nome e o entusiasmo de uns gatos pingados. Os gays não se contentam em reivindicar Mario de Andrade, querem Zumbi também.
São conhecidas algumas das razões da fraqueza do movimento negro. Claro que não-brancos nascem e crescem em enorme desvantagem nesta sociedade. Mas os abismos da nossa desigualdade social são tão imensos que o problema étnico se dissolve e desaparece neles.
Mais importante, a população não é branca ou negra, mas se concentra nas gradações intermediárias, o que obviamente dificulta, se é que não impede, a identificação por raça. Todos queremos nos desidentificar da nossa própria ``raça", até mesmo o ricaço branco quando compra propriedades em Miami.
Onde o racismo é ideológico, por exemplo nos EUA, e não a sombra difusa que é aqui, prevalece a lei do olho por olho, dente por dente: orgulho contra orgulho, agressão contra agressão. Ali, tudo o que as políticas corretivas conseguem é eternizar, recalcando, o ódio ao diferente.
Esse ódio está entranhado em todos nós. Numa sequência inesquecível do filme ``Faça a Coisa Certa", do cineasta negro Spike Lee, assistimos aos depoimentos de um irlandês, um judeu, um negro, um coreano e assim por diante, cada um dizendo como detesta o outro.
Não é de estranhar que, numa entrevista recente à escritora Marilene Felinto, o autor do filme tenha reagido contra a idéia de que a maioria dos brasileiros se considera mestiça, suspeitando de algum subterfúgio. Para um americano, também as pessoas são ou brancas ou pretas.
O ativismo negro é fraco porque o racismo é difuso, e o racismo é difuso porque nunca houve ``orgulho" branco entre nós. Orgulho de quê? De uma sociedade de aventureiros e aproveitadores, de colonos que estavam de passagem, ansiosos para voltar à metrópole, por sua vez decadente?
Um dos aspectos mais criticados ao longo da historiografia, a saber, a desordem da sociedade brasileira, sua falta de organicidade e de consciência, explica também o porquê da nossa ``cordialidade" racial, só interrompida nas piadas incorretas ou quando a ameaça étnica se entrelaça com a social.
O dilema do movimento negro, então, parece ser este: tudo o levaria a preconizar uma estratégia de integração numa sociedade já intensamente mestiça, mas essa estratégia tende a reforçar a desidentidade, que está na base da sua própria fraqueza.
A política de cotas (uma reparação estrutural em vez de monetária, como pleiteiam aqui), ao mesmo tempo que nega, reforça o racismo, que se torna um jogo de espelhos entre os grupos raciais, como nos EUA. Aqui, ao contrário, a desidentidade é tanta que agora é preciso libertar Zumbi do cativeiro gay.

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