São Paulo, sexta-feira, 2 de junho de 1995
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Antunes vira dramaturgo com 'Gilgamesh'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Antunes vira dramaturgo com 'Gilgamesh'
Peça: Gilgamesh
Autor: Antunes Filho
Direção: Antunes Filho
Cenografia: J.C. Serroni
Elenco: Luis Melo, Luis Furlanetto, Raquel Anastasia e outros
Quando: Quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h
Onde: Teatro Sesc Anchieta (r. dr. Vila Nova, 245, tel. 256-2281)
Quanto: R$ 16,00 quinta, sexta e domingo: R$ 20,00 sábado
Sinopse: O rei Gilgamesh, depois de muitas aventuras e diante da morte de um amigo, sai em busca da fonte da juventude

``Gilgamesh", a peça escrita pelo diretor Antunes Filho, com base no poema épico de mesmo nome, estréia para o público hoje à 21h, no teatro Anchieta.
Antunes desta vez privilegiou o trabalho como autor e vê o texto, não como uma adaptação, mas como peça autônoma, que pretende publicar em livro e até passar para outros diretores.
Em entrevista, ele fala da nova experiência.

Antunes Filho - O difícil na peça foi que a poesia épica dá os efeitos, dá os fatos, e você tem que rastrear as causas. Tem que buscar as causas, como um ator. Quando um ator pega um texto, ele tem que rastrear o passado, em busca das raízes. Foi essa a dificuldade maior. Havia momentos... As tábuas do poema são fragmentadas. Você tem que intuir dos fragmentos. A minha atitude como autor foi que não é o fato que importa, mas como eu sinto, através do meu instinto.
Folha - Por que você não publica ``Gilgamesh"?
Antunes - Eu vou publicar. Este aqui eu vou publicar, embora esteja... É terrível, porque muitas coisas eu vou poder fazer, outras não, no espetáculo. Depois vai depender de cada diretor, de cada encenação. Cortar, acrescentar, tirar ou pôr. Eu vou publicar na íntegra, embora nem toda a peça eu vá fazer neste espetáculo, devido à realidade em que eu estou, devido às condições que eu tive. Cada diretor vai entrar com a sua perspectiva e fazer esse texto como bem aprouver. Mas eu tenho certeza de que com esse texto na mão de um bom diretor, você pode fazer o que quiser, desde musical, pode fazer cinema.
Folha - Mas ``Gilgamesh" é mais uma peça de ritual.
Antunes - É, embora tenha esse outro lado. Como eu tentei mais o lado ritualístico, eu deixei a coisa mais como uma viagem, na primeira parte. Eu queria servir melhor ao ritual. Se eu quiser servir melhor ao lado dramático, aí eu faria certos cortes na primeira parte e entraria de maneira mais eficiente na segunda parte. Mas depende sempre da encenação. O texto de teatro, ele não é nada. Ele só vale na hora em que está sendo montado, ao vivo, com aquelas pessoas, naquele momento, naquele lugar.
Muitas pessoas, quando vão fazer Nelson Rodrigues agora, falam, como se fosse uma coisa extraordinária, ``eu não cortei uma linha". É uma imbecilidade. A sintaxe do tempo do Nelson era do pós-guerra. Não é mais como 50 anos atrás. E os imbecis querem conservar, ``ah, eu sou um cara puro". É como o folclore. Eu preciso do meu folclore, mas não tenho que ficar adorando o folclore. Eu tenho que investir, com esse material, no futuro. Se não você coloca no museu, burramente. O museu é para você ter uma referência, de formação. Acabou a formação, vamos adiante.
Folha - Com ``Gilgamesh", pela primeira vez você fala como autor, até com relação ao que outros diretores possam fazer com a sua peça. Você se sente um dramaturgo?
Antunes - Eu adorei o poema e tinha que tornar factível o poema no palco. Como? Eu preciso ter um elenco, um lugar para ensaiar, um teatro, uma produção, e eu tenho que ter um texto! Então, é uma batalha objetiva, pragmática. Eu tinha que resolver o problema. Porque eu acho que, em muitos textos no Brasil, falta objetividade. É uma coisa meio... É o sexo dos anjos, fica no devaneio. O Shakespeare é genial porque ele tinha um olho na bilheteria, sempre. Além do mais, ele tinha um elenco que melhorava o texto dele. Ele ia mudando conforme o elenco. É essa a relação viva. E os autores, em muitos textos no Brasil, escrevem numa relação de freezer. Fica congelado, porque falta o palco. O autor precisa do palco, da companhia do diretor e da companhia dos atores, principalmente.
Mas eu pergunto, também, será que os atores estão preparados para dizer os textos? Eu acho que houve, no Brasil, aliás, em todos os países do mundo, uma crise em que os atores não exigem grandes autores. Veja bem, se você escreve mais ou menos bem, você vai ser burro de escrever para teatro, sabendo que vai cair na mão de atores absolutamente grosseiros, que só sabem gritar, que só sabem fazer butô em cena, fazer negócios estranhos em cena? O momento é crítico para o teatro. O momento não é bom para o dramaturgo. Não pode surgir bom dramaturgo atualmente. Não dá.
Folha - Mas os dramaturgos estão surgindo.
Antunes - Os dramaturgos estão surgindo hoje em dia, de duas maneiras. Um é freezer, esse que faz as coisas no congelador, que se aliena. Como é que um autor, que tem que lidar com a sociedade, com as idéias vivas, com o organismo vivo da sociedade, pode escrever assim? O outro autor, que está vivendo esta sociedade, vê que não dá certo isso, ele escreve comédia de costumes, para ganhar dinheiro, para faturar em cima. Então, ou o autor é um alienado, faz o sexo dos anjos, ou está vendendo batatas, laranja, o que tiver, em liquidação.

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