São Paulo, sexta-feira, 2 de junho de 1995
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Estado trata a cultura como perfumaria

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estado trata a cultura como perfumaria
Como se sabe, o governo Mário Covas desenvolve uma política destrutiva na área cultural. A crise na TV Cultura -cortes de verbas, demissões em massa- é o mais recente capítulo de uma história de desmantelamentos e colapsos que atingiu museus, oficinas culturais e instituições do gênero.
Como se sabe, o governo Mário Covas recebeu um Estado falido; como se sabe, as administrações Quércia e Fleury esvaziaram o cofre; como se sabe, não há dinheiro para nada.
Muito menos para investir em cultura. Cultural é sempre aquela área que, na escala de prioridades governamentais, está atrás de todas as outras. Claro que é melhor construir presídios novos do que patrocinar espetáculos de balé.
O problema de um raciocínio como esse, entretanto, é que sempre se identifica a cultura como algo de supérfluo, como perfumaria.
Minha impressão é que as coisas não são exatamente assim. Se entendermos ``cultura" no sentido mais amplo, parece-me claro que, nem mesmo no plano individual, da economia doméstica, os gastos com cultura são considerados os mais facilmente dispensáveis.
Para citar um caso extremo, até o favelado faz questão de ter uma TV em casa, mesmo que tenha de sacrificar partes mais importantes do orçamento. Uma comunidade pobre do interior não hesita em gastar dinheiro com fogos de artifício numa festa religiosa.
Se esse comportamento é o mais correto, o mais racional, não sei. Só sei que, muitas vezes, o supérfluo é necessário até... por ser supérfluo.
O conceito de supérfluo é mais complicado do que parece. Ter um cachorro em casa, por exemplo, é supérfluo. Mas quanta gente não dispensa um? Outro exemplo: uma criança se machuca; sofre um acidente. O essencial, o importante, é que façam um curativo. De um ponto de vista puramente material, isso basta. Mas não é supérfluo, admita-se, que a mãe da criança machucada lhe faça carinhos ou diga qualquer frase para consolá-la...
Sem maiores pieguices, o que quero dizer é que nunca, em sociedade alguma, o plano das necessidades materiais se coloca como uma alternativa suficiente ao plano -chamemos assim- dos bens simbólicos, da produção cultural em seu sentido mais amplo.
Acho curioso, até, que tantas pessoas digam que nenhum livro, nenhuma idéia, é capaz de mudar qualquer coisa na história humana. Todas as evidências indicam o contrário. Não é só o caso de citar a Bíblia ou o Alcorão, ou Marx, ou Freud, como livros e pessoas que mudaram profundamente a vida de cada um.
Mesmo num plano bem mais modesto, um romance barato ou um filme de quinta categoria contribuem para redefinir, ou confirmar, as idéias que temos a respeito do que seja amor, felicidade, erro e acerto.
É também famosa a frase segundo a qual, depois dos horrores dos campos de concentração nazistas, ficou impossível escrever um poema. De um lado, é verdade. De outro lado, é claro que não. Não só porque poemas continuaram a ser escritos -mas não é argumento: pode-se dizer que todos os poemas passam a ficar sob suspeita-, mas, principalmente, porque, se não houvesse boa literatura, talvez fossemos incapazes até mesmo de achar horrível o que aconteceu sob o nazismo.
Isso porque essa esfera tão supérflua, tão inútil, que é a cultura tem na verdade uma função essencial. As grandes obras de arte são ``falsas", ``suspeitas", ``descartáveis", porque não são trabalho honesto e produtivo num mundo que padece de grandes carências materiais. Ao mesmo tempo, não têm nada de falso, suspeito, descartável ou desonesto, à medida que apontam para um ideal de comunicação humana, de liberdade, de felicidade, que teoricamente está dado ao homem atingir.
Não fosse isso, o melhor seria a gente se contentar com a pura animalidade, devorando raízes e carne crua; situação que inspiraria horror, não tenho dúvida, até mesmo ao governador Mário Covas.
Mas, afinal, ele não tem culpa. Quando se candidatou, nenhuma notícia de jornal o avisava que ele teria de destruir a cultura. Empreguismo nessa área sempre houve. Como em todas as outras. Mas de cultura ele entende mais, e é mais fácil demitir.
O demitido até agradece: ``Com efeito, minha área é supérflua..." Etc. etc.
E, afinal, que importa se os programas educativos da TV Cultura parem de ser produzidos? A criança, que já foi aliás acidentada e recebeu carinhos da mãe, tem muito mais a lucrar assistindo ao ``Aqui Agora" do que a programas como ``Castelo Rá-Tim- Bum" ou ``O Mundo de Beakman", que competem forte no mesmo horário. São programas da TV Cultura, estão em terceiro lugar na audiência, pouco atrás da criminalidade do SBT.
Certamente, o secretariado do governo Covas deve ter passado o período de campanha eleitoral assistindo ao SBT. Notícias de ordem policial eram mais pertinentes para quem pretendia suceder ao governo Fleury.
Não sei se me faço entender; lembro apenas que, entre os feitos da administração anterior, conta-se o fuzilamento de 111 presos no Carandiru, que, sem dúvida, eram bandidos de pequeno coturno, mas que, estando presos, representavam evidente ameaça à segurança pública.
Mas voltando ao assunto cultural. Não acho certo defender perfumarias. Acho que, mais do que nunca, a cultura não é perfumaria.
Um dos aspectos mais evidentes das sociedades contemporâneas é que a cultura nada tem de perfumaria inútil. Do ponto de vista econômico, Hollywood é grande fonte de renda para a sociedade americana. Não é mau que alguns programas da TV Cultura estejam sendo vendidos a outros países.
Mais importante, contudo, é o fato de haver relações entre cultura e segurança pública. Sabe-se que em grande parte a criminalidade é fruto da miséria etc. Nem sempre. Fundamentalismos religiosos, intolerâncias políticas e o excesso de energia de muita juventude que não tem o que fazer, nem sabe exatamente o sentido do que faz, respondem por um clima de violência onde o que existe, em última análise, poderia bem ser chamado de vazio cultural.
Não estou nem sequer defendendo as belas-artes e as escolas de balé. A administração da cultura -entendida de forma pública, e não como catequese partidária- é um dos assuntos cruciais a serem resolvidos pelo Estado contemporâneo.
Trata-se de uma educação em sentido amplo, que não se limite à habilitação formal para ler e escrever. Formar cidadãos críticos, democráticos, tolerantes, pacíficos, inteligentes não é pouca coisa, muito menos perfumaria.
A própria iniciativa privada parece reconhecer sua incompetência nesse âmbito. Não é à toa que patrocina, e talvez a solução seja que patrocine mais, as iniciativas da televisão educativa nesse sentido.
Só o governador Mário Covas não parece ter reconhecido isso. Não dispõe de verbas, é claro. O espantoso é que não soubesse, quando se candidatou, que não poderia fazer coisa nenhuma.

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