São Paulo, sexta-feira, 2 de junho de 1995
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Medéia e o sono dos estatísticos

JOSÉ SARNEY

Nova York - Eu, que durmo pouco, sinto calafrios quando me lembro da maldição de Medéia: ``Não dormirás jamais". Mais ainda, tendo inveja dos que dormem muito, como o senhor que de meu lado a bordo, mal decola o avião, começa a ressonar, vejo com admiração essa gente nova que para acordar precisa de uma verdadeira bateria de escola de samba.
Mas inveja eu tinha mesmo era de um ministro que tive que, nas solenidades, na segunda saudação do orador, ele já puxava um ronco dos diabos. Como são felizes aqueles que dormem o sono solto nas conferências, aulas, diplomação, missas e sermões. São deles o reino dos céus.
Conta-se de Agripino Grieco a anedota de que encontrou Carolina de Meneses e foi logo lhe dizendo: ``Já dormimos juntos". Ela, ruborizada, constatou: ``Que falta de respeito". Ele retrucou tranquilo: ``Numa conferência do Eloy Pontes."
Agora leio no ``US Today", numa matéria de longa meditação, que o homem no século 19 dormia a média de nove horas e meia por dia e que, agora, no século 20, está dormindo menos, apenas seis horas. E, bem ao gosto dos americanos, diz do prejuízo para o país com isso. Dorme menos. O homem trabalha mal no dia seguinte, diminui sua produtividade e a nação perde bilhões de dólares. Por que se está dormindo menos?, pergunta o jornal. Pela oportunidade de não sair do canal da TV, diversões, conversas, passeios e a tentação de toda sorte e modo de ficar acordado, como a essência da vida. E vêm agora esses cientistas e dizem que viver é dormir. Necessita-se dormir. A América deve dormir! Entenda-se a humanidade.
Por outro lado, vou visitar o dr. Freiman, um dos maiores clínicos americanos que a Presidência da República me possibilitou conhecer, e ele me diz que uma das raridades de sua vida médica foi um cliente brasileiro que lhe veio pedir remédio para não dormir. O homem queria ficar acordado, argumentando que era homem de negócios e que, dormindo, perdia dinheiro.
Realmente é impossível entender o mundo. Clinton está perdendo o sono com a Sérvia e a Bósnia; Fernando Henrique, com a CUT, e eu, porque o meu sonífero não está dando resultados.
O Brasil já tem, no seu hino, um convite a dormir: ``deitado, eternamente, em berço esplêndido", muito glosado na minha juventude. E está certo. Quem dorme muito é quem tem consciência tranquila, como pensa o povo, que pensa também que ``Deus ajuda quem cedo madruga". Barão de Itararé achava que o Brasil crescia quando dormíamos.
Muita gente, hoje, está perdendo o sono pelas dificuldades da vida e outros pelas facilidades, isto é, nas alegrias de viver. Com os juros altos perdem o sono os comerciantes e os ruralistas. Dormem bem os banqueiros e altos funcionários das estatais.
É impossível saber quanto tempo dormiam Luís 14 ou Henrique 4º? Ou os soldados das guerras napoleônicas? Ou Jefferson, Madison e Hamilton?
Por isso perderam sono e tempo os estatísticos que calcularam o sono de ontem e o de hoje. Dormir ou não dormir, eis um novo tema com repercussão na economia, para tirar o sono dos presidentes.
Na nossa história se sabe apenas de d. João 6º, que dormia nos teatros e, ao acordar, sempre perguntava: ``Esse gajo já casou?".

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