São Paulo, sexta-feira, 2 de junho de 1995
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A vida pessoal

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Para Sartre, o inferno seriam os outros. Para Santo Agostinho, seria a impossibilidade da vida pessoal. O caso do ex-presidente do Banco Central Pérsio Arida fica bem numa ou noutra explicação. Ele invocou motivos de ordem pessoal para pedir demissão. Mas está na cara que os ``outros" também atrapalharam.
Pulando do caso geral para o particular, o direito à vida pessoal sempre me impediu de entrar em partido político ou em qualquer outro tipo de partido. No mundo neoliberal da eficiência a qualquer preço, todos serão obrigados à competência, não haverá lugar para vida ou problemas pessoais, a não ser o câncer e a Aids -mesmo assim sob condições.
Felizmente, não é esse o caso do sr. Pérsio Arida. Ele apenas deseja ter direito à vida pessoal, mesmo sem estar doente -e aproveito a ocasião para desejar-lhe saúde e prosperidade. O diabo é que ninguém acreditou no motivo alegado. No fundo, cobra-se do homem público a disponibilidade integral à causa pública. Alegar problemas pessoais equivale a fazer uma greve particular. Donde se conclui que muita gente adora viver no inferno.
No início dos tempos, os anjos foram expulsos do céu porque desejavam ter vida pessoal e por isso se tornaram demônios. Hoje, os demônios se expulsam do inferno para terem direito à vida pessoal. E aí se cai no exemplo do palhaço: não sendo anjo nem demônio, também não tem direito à vida pessoal.
Há o soneto muito divulgado no Nordeste, de autor que não é considerado nobre. Não lembro o soneto inteiro, só o enredo e o final. O enredo é trágico: morre o filho do palhaço, e a esposa está em coma. Ele pensa em pedir um tempo, mas o empresário diz que a platéia o reclama. Com a cara pintada de alvaiade, o nariz de framboesa, o colarinho folgado, ele entra no picadeiro. E diz o soneto: ``Enquanto o lábio trêmulo gargalha, dentro do peito o coração soluça". A vida pública exige o lábio trêmulo que gargalha. Há gente que gosta. A platéia ri. Mas, se estivesse bem informada, talvez chorasse.

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