São Paulo, sexta-feira, 2 de junho de 1995
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Direitos desiguais

DALMO DE ABREU DALLARI

"Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei".
(Lema dos governos da Primeira República brasileira, segundo os historiadores)

A discussão atual sobre a recusa dos petroleiros a voltar ao trabalho, mesmo depois de declarada ilegal uma greve, tem revelado inflamadas preocupações legalistas que, em muitos casos, são incoerentes ou de suspeita autenticidade. É oportuno analisar o assunto sob o aspecto jurídico, num sentido amplo, para que as pessoas de boa-fé e o próprio governo percebam algumas implicações muito sérias, até aqui silenciadas.
Um ponto básico é a incoerência do Executivo federal, que usa dois pesos e duas medidas em termos de exigência de estrito respeito à legalidade. No caso dos petroleiros, a origem do conflito é um acordo celebrado no final de 1994, com a participação do presidente da República, do presidente do Petrobrás e de um ministro de Estado.
Naquela oportunidade foram registrados todos os itens do acordo num documento escrito, assinado, então, pela liderança sindical dos trabalhadores e pelo ministro. As partes interessadas manifestaram livremente sua vontade, não havendo qualquer dúvida quanto ao que foi acordado nem quanto à legalidade das cláusulas ajustadas. É razoável supor que todos os participantes estavam de boa-fé e acreditavam na plena validade do acordo. Além de tudo, estavam presentes autoridades federais que, de fato, poderiam autorizá-lo ou impedi-lo.
Agora, quando deveria ser cumprido o acordo, o presidente da República determinou à Petrobrás que se recusasse a isso, porque o cumprimento não convinha à política econômica do governo. É importante notar que a resistência veio do presidente da República que, inclusive, determinou depois que o presidente da Petrobrás não negociasse com os trabalhadores.
Isso deixa fora de dúvida que o presidente da República manda realmente na Petrobrás, o que reforça a convicção de que o acordo de 1994 teve a concordância de quem podia decidir pela empresa. Para justificar o descumprimento, alegou-se que a formalização daquele ajuste não se tinha completado, por ter faltado a manifestação de concordância de órgãos administrativos da Petrobrás, aos quais o estatuto confere essa atribuição.
Considerando exclusivamente os aspectos formais, sem levar em conta que houve manifestação inequívoca da vontade de ambas as partes na atribuição de direitos e responsabilidades, e dando importância absoluta à forma, mesmo numa situação em que ela em nada afetava o compromisso ético e a essência do ajuste jurídico, o Tribunal Superior do Trabalho julgou sem validade o acordo. É inegável que, considerado o assunto de um ponto de vista estritamente formal, a imperfeição consistente na falta de uma formalidade oferece justificativa para o descumprimento. Mas, evidentemente, isso não é ético e reduz o direito a um jogo de formalidades, muito conveniente para enganar ingênuos de boa-fé.
Vejamos agora outra situação, que também envolve o Executivo federal e que apresenta imperfeição de formalidades. Trata-se, na verdade, de muitos acordos semelhantes, que constituem a base jurídica da dívida externa brasileira. Durante o período dos governos militares, houve grande estímulo à contratação de empréstimos externos por empresas brasileiras, tanto privadas quanto públicas. Mas os credores internacionais queriam mais segurança e por isso exigiram que o governo brasileiro fosse avalista.
Autoridades brasileiras, levadas por motivos que até hoje não são claros, concordaram com tudo e assumiram a responsabilidade pelo pagamento da dívida de particulares, sem nenhuma espécie de controle. Esses acordos internacionais foram e continuam sendo aplicados, custando muito caro para o povo brasileiro.
Pois bem, além das ilegalidades de muitas cláusulas dos acordos, ocorre que a Constituição brasileira de 1967, então vigente, estabelecia a competência privativa do presidente da República para ``celebrar tratados, convenções e atos internacionais, `ad referendum' do Congresso Nacional" (art. 83, VIII).
Esse dispositivo, mantido pela chamada emenda constitucional número 1 de 1969, vigorou até o advento da Constituição de 1988. De acordo com essa exigência constitucional, os atos internacionais que deram origem à imensa dívida externa que o Brasil vem pagando deveriam ser, obrigatoriamente, submetidos ao Congresso Nacional, que poderia referendá-los ou não. Essa formalidade, expressamente exigida, era importantíssima no caso, porque estava implicada a colocação de enormes encargos financeiros nas costas do povo brasileiro.
Tal formalidade, apesar de expressa e claramente imposta pela Constituição, jamais foi cumprida. Se for aplicado a esses casos o mesmo critério adotado pelo Executivo federal e pelo Tribunal Superior do Trabalho quanto ao ajuste com os petroleiros, a conclusão lógica e indiscutível é que os atos relacionados com a dívida externa brasileira que não tiverem sido referendados pelo Congresso Nacional não têm valor legal. E, na realidade, nenhum daqueles atos foi submetido ao Congresso para a necessária aprovação.
Em consequência, se o presidente da República quiser ser coerente e justo, deverá mandar suspender imediatamente o pagamento da dívida externa e dos juros respectivos. Isso demonstraria a autenticidade de sua disposição, manifestada no caso dos petroleiros, de não cumprir obrigações que não tiverem sido estabelecidas com estrita obediência das formalidades previstas.
Se não houver essa coerência, será difícil convencer os trabalhadores de que, no Brasil, o direito é igual para todos e de que a lei não é mero pretexto para diferenciar amigos e inimigos.

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